SONETOS
1.
Quem de meus versos a lição procura,
os farpões nunca viu de amor insano,
Nem sabe quanto custa um vil engano
Traçado pela mão da formosura.
Se o peito não tiver de rocha dura,
Fuja de ouvir contar tamanho dano,
Que a desabrida voz do desengano
O mais firme semblante desfigura.
Olhe que há-de chorar, vendo patente,
Em tão funesta e lagrimosa cena,
O cadafalso infame e sanguinoso.
Verá levado á morte um inocente:
E condenado a vergonhosa pena
O mais fiel amor, mais generoso.
2.
Cantar Marília ouvi, tão docemente,
Que o coração, prostrados os sentidos,
Imaginou que até pelos ouvidos
Seus olhos o assaltavam de repente.
Entrara a doce voz tão brandamente
Quais entram na alma os olhos seus, movidos
Com formoso desdém, quando rendidos
Pisa desejos mil tiranamente.
O poder milagroso da harmonia,
Que no peito em triunfo campeava,
Na mão por palma os olhos seus trazia.
Eu, que no carro fatal atado andava,
Se era vê-la ou ouvi-la, não sabia:
Sei que os novos grilhões não estranhava.
3.
Espargindo dourados resplendores,
De teus anos, angélica Maria,
Nasce o ditoso, o suspirado dia,
Dia das Graças, dia dos Amores.
Juncada a terra de orvalhadas flores,
Em sinal de prazer e de alegria,
Das frautas alternando a melodia,
Travam coreias ninfas e pastores.
Pelas côncavas fragas retinindo,
O brando som de versos sonorosos
Teu nome estão os montes repetindo.
E os sátiros camponeses, cobiçosos
De ver os olhos teus, teu gesto lindo,
Se penduram dos álamos frondosos.
4.
Ao som dos duros ferros que arrastava,
A lira de ouro Corydin tangia;
De Márcia o doce nome repetia,
Mas no meio do canto soluçava.
No rosto macerado, que enfiava,
O lagrimoso pranto reluzia;
E nos olhos, que aos altos céus erguia,
O pensamento intrépido voava.
Não se assombra de ventos insofridos,
Nem com ousado lenho arar intenta
O pólo do futuro nebuloso.
Menos chora terrenos bens perdidos;
De pouco um peito grande se contenta:
Antes quer ser honrado que ditoso.
5.
Tu és, Dircea, filha do Tirreno,
Eu, um dos filhos sou do pobre Alceste;
Mas nem por fado teu tal pai tiveste,
Nem eu por culpa minha sou pequeno.
Bem sei que te pretende o rico Alceno;
Mas, se peles e lãs mais finas veste,
Também no amor o venço, qual cipreste
Excede no robusto ao brando feno.
Deixa vaidades da justiça alheias:
Não desprezes afectos e ternura
Por teres mais cabritos e colmeias.
Faze, Dircea, reflexão madura:
Vê que a virtude própria em mim premeias,
E nele só premeias a ventura.
6.
Não cobre vastos campos o meu gado;
O maioral não sou da nossa aldeia;
Do meu trabalho como, mas, Dircea,
Ainda que sou pobre, vivo honrado.
No jogo da carreira e do cajado
Até o destro Algano me receia.
Qual loura espiga de grãozinho cheia,
Me alegra ver teu rosto delicado.
Se queres minha ser, fala a verdade,
Não vestiras as peles mais vistosas,
As finas lãs tecidas na cidade.
Trajaras das que eu trajo as mais mimosas:
Fá-las-á de mais preço a sã vontade
Com que quisera dar-te as mais custosas.
7.
Amor, nos olhos da formosa Clara,
Armado não de setas, de ternura,
Cruéis vinganças implacável jura,
Guerra fatal aos corações declara.
Dos brandos tiros que dali dispara
Ninguém pode, ninguém fugir procura,
Que do mesmo poder da formosura
Nenhum peito de bronze se depara.
Seus lindos olhos, com desdém movidos,
Pisam desejos mil, rendem mil peitos,
Lançam por terra corações feridos.
Se esquivos causam tão cruéis efeitos,
Inda causam mais ânsias, mais gemidos,
Quando se deixam ver a amor sujeitos.
8.
Não minto, não, se disse que os Amores
Estavam no ar suspensos, esperando
Que tua voz divina modulando
Aplacasse dos ventos os furores:
Ergue, Mafalda, os olhos vencedores,
Vê-los-ás para aqui andar voando,
E, os retorcidos arcos afrouxando,
Largar das tenras mãos os passadores.
Não vês o fulvo Tejo c'o tridente
Os cavalos azuis estar detendo,
As levantadas ondas reprimindo?
Se isto sente, Mafalda, quem não sente,
Que não sentirei eu, ouvindo e vendo
Tua angélica voz, teu rosto lindo?
9.
Estavam as três Graças penteando
O cabelo subtil de Amor um dia;
Qual c'o marfim assírio lhos abria,
Outras andam mil gemas preparando.
Amor, como rapaz, de quando em quando,
Co'a dourada cabeça lhe fugia;
Porém, vê que Eufrosina se sorria,
Porque Aglaia lhe está as cãs tirando.
O Menino, pasmado, vê no espelho,
Por entre os anéis de ouro reluzente,
Branquejar a saraiva da velhice:
Suspira e diz: Oh! Saiba a cega gente
Que Amor, nascendo moço, se faz velho,
Que ter um velho amor, não é tontice.
"Cantata de Dido e outros poemas", Pedro António Correia Garção, Livraria Clássica Editora.
o meu exemplar é uma 2ª edição, de 1965. consta das primeiras folhas, carimbado, que foi uma oferta da Secretaria de Estado da Cultura. lembro-me desse momento. mesmo olhando no tempo e sob os olhos de agora, esse e o resto do caixotinho que me deram foi uma oferta justa. ajudara a implantar um Centro Cultural e a amabilidade tida foi correcta. até que, trinta anos depois, tenho-o, uso-o, leio-o e transcrevo-o e está em excelente estado: como novo. eu amo os meus livros.