domingo, 30 de dezembro de 2007

prosa sem poema

fim de ano, gelhas que não se renovam e os novos azulejos dessa monstruosidade dum ano inteirinho que está a chegar, esses, às lascas besuntadas em betume caseiro, esses, os novos, o Novo Ano, lá se irá construíndo tal como a sombra das árvores é certa (mas fugidia)... até que a cortem.
gostavade ser poeta mas não sou e, assim, à bruta, é-me vedado dourar a prosa com as artimanhas alquimísticas que só os iniciados sabem, rimar desgostos com dias e outras tantas noites, e amanhecerem com, no caderno irreal das madrugadas pautadas, o Poema dito e feito. eu não sei. não conheço outra forma de contá-las senão por extenso, e em extenso ex-maiúsculo. eu não sei, até reconheço que nunca soube e, anos a fio, enganei e enganei-me maiusculando que sabia. afinal, minúsculo, e que bem sabe este descanso, esta pantufa de silêncio, leve agitar de asas para não incomodar esse grande senhor, o Verbo, ele e sua corte vociferante, tanta escrita de altifalantes que (se) apregoam como se em feiras se escrevessem saldos por extenso rebuscado, leva dois e paga um, melhor poema não há, senhor!
(tás parvo)
(mas continua)
tanto que aprendi lendo, lendo calado!... lendo-me? sim, também isso. principalmente isso. este raspar agradável de adiposidades, este rever de pele e osso, meus, não botox intelectual ou plásticas culturais. como diria o outro, um bartebly - e como eles são felizes! como ela diria (e disse) a felicidade está nas pequenas coisas, no lavar do carro, na conversa de rame-rame com o vizinho, no sorriso que nasce quando se pousa um bom livro. lendo-me.
fim de ano e amanhã já não poderei escrever fumando, amanhã escondo-me mais os meus vícios, reajusto a fuga às novas condições, legisladas, hipocritamente assumidas. hoje ainda é ano velho e hipocrisias velhas, as gelhas, as palavras velhas, a incapacidade de poetizar. foi bom o Ano. encontrei-me. nem que não seja por mais, por tê-lo começado em maiúsculas e o terminar assim, naturalmente nu em cima da balança, o peso real à vista.
a sombra fica - até que a cortem, que não há árvores eternas.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

desabafo natalício

... e ando eu preocupado com tostões, quando no BCP se esbanjam milhões...

um bom Natal a todos, pré-arguidos incluídos.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

à volta da literatura do Não - "Bartleby & Companhia"

"(...) Há vinte anos, quando era muito jovem, publiquei um romancezinho sobre a impossibilidade do amor. Desde então, por causa de um trauma que já explicarei, não tinha voltado a escrever, pois renunciei radicalmente a fazê-lo, tornei-me um bartleby, e daí o meu interesse, desde há algum tempo, por eles.
Todos conhecemos os bartlebys, esses seres nos quais habita uma profunda negação do mundo. Tomam o seu nome do escrevente Bartleby, esse empregado de escritório de um conto de Herman Melville que nunca foi visto a ler, nem sequer um jornal; que, durante períodos prolongados, fica de pé a olhar para a rua, através da pálida janela que existe atrás de um biombo, na direcção de um muro de tijolo de Wall Street; que nunca bebe cerveja, nem chá, nem café como toda a gente; que nunca foi a parte nenhuma, pois vive no escritório, inclusivamente aos domingos; que nunca disse quem é, nem donde vem, , nem se tem parentes neste mundo; que, quando lhe perguntam onde nasceu ou lhe pedem que conte alguma coisa sobre ele, responde sempre com:
- Preferia não o fazer.
Há algum tempo que persigo o amplo espectro do síndroma de Bartleby na literatura, há algum tempo que estudo a doença, o mal endémico das letras contemporâneas, a pulsão negativa ou a atracção pelo nada que faz que certos criadores, embora tendo uma consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso) nunca cheguem a escrever; ou escrevam um ou dois livros e depois renunciem à escrita; ou, depois de avançarem com uma obra fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre.
A ideia de rastrear a literatura do Não, a de Bartleby e companhia, nasceu na passada terça-feira no escritório quando me pareceu que a secretária do chefe dizia a alguém pelo telefone:
- O senhor Bartleby está em reunião.
Ri-me sozinho. É difícil imaginar Bartleby reunido com alguém, mergulhado, por exemplo, na pesada atmosfera de um conselho de administração. Mas não é tão difícil - é o que me proponho fazer neste diário de notas de rodapé - reunir um bom punhado de bartlebys, quer dizer, um bom punhado de escritores tocados pelo Mal, pela pulsão negativa.
Claro que ouvi «Bartleby» onde devia ter ouvido o apelido, muito parecido, do meu chefe. Mas a verdade é que este equívoco acabou por ser muito oportuno, pois colocou-me de repente em marcha; depois de vinte e cinco anos de silêncio, decidi por fim voltar a escrever, a escrever sobre os diferentes segredos últimos de alguns dos mais apelativos casos de criadores que renunciaram à escrita.
Disponho-me, pois, a passear pelo labirinto do Não, pelas sendas da mais perturbadora e atraente tendência na qual se encontra o único caminho que resta à autêntica criação literária; uma tendência que pergunta o que é a escrita e onde está, andando à volta da impossibilidade da mesma e dizendo a verdade sobre o estado de prognóstico grave - mas sumamente estimulante - da literatura deste fim de milénio.
Só da pulsão negativa, só do labirinto do Não pode surgir a escrita por vir. Mas como será essa literatura?, perguntou há pouco, com certa malícia. um colega de escritório.
- Não sei - respondi. Se soubesse eu próprio a faria.
Vamos a ver se sou capaz de a fazer. Estou convencido que só do rastreio do labirinto do Não podem surgir os caminhos que restam para a escrita que vem. Vamos a ver se sou capaz de os sugerir. (...)"


do início de "Bartleby & Companhia", Enrique Vila-Matas, editora Assírio & Alvim, 2001, em tradução de José Agostinho Baptista.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

no JL desta quinzena a não perder a "carta a Mário Cesariny" por quem o conheceu (bem) como poucos: o prof. Perfecto E. Quadrado. ora lê-de:
" (...) Deixaste o cais, Mário, e começaram as rebaixas sobre as rebaixas. Sobre nós todos, a sombra de Elsinor, mas às avessas: não era desta vez Elsinor o castelo, mas sim o seu espaço, o país, o mundo à sua volta, e entre os seus muros era a festa contigo e teus amigos e a troupe de iniciados no prazer e nas dores da aventura da reabilitação do real quotidiano. (...) O tempo piorou, Mário. Alguém atirou um tiro ao ar, e todos começámos a correr sem saber para onde, sem saber porquê nem para quê, sem tempo de reparar no rosto e no sentir dos outros corredores, é de rir às gargalhadas, Mário, esta corrida de loucos guiada por cegos como Shakespeare descrever o prodígio, de cegos conduzidos por loucos, de cadáveres adiados auto-móveis que procriam sem deixar de correr para parte nenhuma (...) e todos a correr, que barulho, Mário, que febre, que cansaço, que aborrecimento. (...)"

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

o fim das Eras

no estertor doutra Liberdade (e já quantas? quantas, que se segue?), agendada para 1 de Janeiro próximo - é assim que se diz, não é? - Serge Gainsbourg prendre la parole:

Dieu est un fumeur de havane
Je vois ses nuages gris
Je sais qu'il fume même la nuit
Comme moi ma chérie

Tu n'es qu'en fummeur de gitanes
Je vois tes volutes bleues
Me faire parfois venir les larmes aux yeux
Tu es mon maître après Dieu

Dieu est un fumeur de havane
C'est lui-même qui m'a dit
Que la fumée envoie au paradis
Je le sais ma chérie

Tu n'est qu'un fumeur de gitanes
Sans elles tu es malheureux
Au clair de la lune ouvre les yeux
Pour l'amour de Dieu

Dieu est un fumeur de havane
Tout près de toi loin de lui
J'aimerai te garder toute ma vie
Comprends-moi ma chérie

Tu n'es qu'un fumeur de gitanes
Et la dernière je veux
La voir briller au fond de mes yeux
Aime-moi nom de Dieu

Serge Gainsbourg
"Mon propre rôle II", collection 'Folie', Éditions Denoël, 1987

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

ao José Luis Peixoto

os arbustos estavam secos e o jardim - que quisera lindo, florido! tinha a sobrevivência mínima onde nem uma flor se via, sem herói ou heroína que se opusesse ao caterpilar que não tardaria a fazer a poda dos ramos secos, dos arbustos secos, da merda de mim, seca.
então, alguém que percebe dessa coisa da poda e acredita que há flores garridas onde o então seu "paciente" só vê cinzentos, falou-me nele, no teu poema, até trocando-lhe o nome mas essa foi a pista para encontrá-lo: ele, o João Paulo, o meu mais recente psiquiatra-amigo, falou-me num poema teu de presumido título "morreste-me". e eu vi luz na erva seca onde me esponjava e disse-lhe que não, que o "morreste-me" era realmente um texto teu, José Luis, o teu primeiro editado e em homenagem à morte de teu pai que só podia ser como fora, edição única, 'de Autor', o "mercado" não o tinha ou tivera em pilhas alinhadas, cemitérios de letras, arbustos e outras sombras que tais. e eu tinha um comigo, oferecido por ti.
mas o "morreste-me" era em prosa e não em poesia. sim, eu lembrava-me. tinhas-mo oferecido já lá vão tantos anos (fui ver: em 2000), as tuas lágrimas eram em prosa, prosa poética e não lágrimas de poesia. e eu tinha mais ''teu", sou teu leitor quando posso: uma orgulhosa 1ª edição do teu 'Nenhum Olhar', uma outra 7ª edição também desse nenhum olhar, rabiscado quando já se assina, e que encontrei perdido entre tantos livros de tantas cores que que não me apetecia trazer nenhum senão o que conhecia e gostara: trouxe então o teu, assinado, 7ª edição, meu duplicado. morta a dedicatória personalizada que - já lá vão sete anos! ainda não havia má tinta no meu tinteiro e o meu jardim era modesto, não o desleixara e mostrava, meio envergonhado meio orgulhoso, 'umas coisas que tinha escrito' aos amigos. tempos de lindo jardim, meu, ainda não invejava as alamedas. de ti, ainda tenho uns contos que vão aparecendo em edições avulsas ('hoje não'; ''minto até ao dizer que minto', etc) e, mais, um livro de poesia pois, tendo com ele chocado numa estante qualquer cheia de folhas secas (já reparaste em como as folhas secam nas estantes?) achei por bem trazê-lo e ler-te, ler a tua poesia pois esse é o jardim que não fenece à presunção e à frase mal parida. ou é ou não é. trouxe o "A criança em ruínas", da 'edições Quasi' e o poema que o dr. João Paulo queria que eu lê-se estava lá, até é contracapa em letras brancas em fundo negro, ramos arbustos folhas, tudo seco, começaram lentamente a desaparecer conforme lia e relia, e hoje até um canto de sol no meu jardim disse-me que, para ela, uma vela acesa é o lugar que não fica vazio numa mesa, a tua mesa, a dela, a que se me desistiu de forçar quando percebi que por muito que seja árido o jardim além da minha janela, tudo seco e tudo sem jeito, há mais lugares à mesa, tua, minha, dela.
bem, vamos ao poema, ao teu melhor poema, José Luis Peixoto que provavelmente nunca lerás isto, mas nem o precisas para saberes que - soubeste-o quando ele te nasceu! sim! "enquanto um de nós for vivo, seremos sempre todos". e sabes que mais? apetece-me chorar* quando assim leio:

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois a minha irmã mais velha
casou-se. depois a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho, mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós for vivo, seremos
sempre cinco.


José Luis Peixoto
*faço-o muitas vezes, já agora. obrigado, José Luis.

sábado, 1 de dezembro de 2007

a dueto

há momentos em que se choca com o passado, os muitos passados que eles são sempre tantos que quando menos esperamos chocam-nos o presente, esteja ele no remanso da areia fina ou em águas de bandeira vermelha... e esses momentos acordam-nos, comovem-nos, mexem connosco. em razões que a outros serão estranhas, coisas 'sem jeito', tonteiras, mas qu'à alma repentinamente acordada trazem o sal duma lágrima, a tal que é a escondida, o parente pobre e com 'ligeiro atraso' que não vem à sala quando há visitas.
e foi há momentos, e por puro acaso de saltitar de blogue em blogue, que ouvi (e vi o video, que não conhecia) uma das minhas canções 'fétiche' dos anos 60's, Look what they done to my song, Ma?, a voz de Melanie, Melanie que só hoje fiquei a saber que de nome completo é Melanie Shafka (já agora o meu, quase-quase completo é Carlos Gil Barreiros). o meu Obrigado por este Momento ao "Macua".
recomendo - claro! - que sigam o link e... ouçam. mas trago para aqui as letras, soletro em livre adaptação "look what I've done to my self, Ma?", que exerço no pleno direito desta ser uma das minhas canções preferidas quando a madrugada nascia e a voz serenava os ruídos do silêncio, prazer meu.
é também óbvio que este blogue termina aqui, esgotada a sua narcísica origem e diluída a sua sombra.
.............
What have they done to my song, Ma?

Look what they done to my song, Ma
Look what they done to my song
Well it's the only thing that I could do half right
And it's turning out all wrong, Ma
Look what they done to my song

Look what they done to my brain, Ma
Look what they done to my brain
Well they picked it like a chicken bone
And I think I'm half insane, Ma
Look what they done to my song

I wish I could find a good book, to live in
Wish I could find a good book
Well if I could find a real good book
I'd never have to come out and look at
What they done to my song

La da da da da da da da
La da da da da da da da

La da da la da da, la da da da da da
Look what they done to my song

But maybe it'll all be alright, Ma
Maybe it'll all be okay
Well if the people are buying tears
I'll be rich someday, Ma
Look what they done to my song

Ils ont change ma chanson, Ma
Ils ont change ma chanson
C'est la seule chose que je peux faire
Et ce n'est pas bon, Ma
Ils ont change ma chanson

Look what they done to my song, ma
Look what they done to my song. Ma
Well they tied it up in a plastic bag
And turned it upside down
Look what they done do my song

Ils ont change ma chanson, Ma
Ils ont change ma chanson
C'est la seule chose que je peux faire
Et ce n'est pas bon, Ma
Ils ont change ma chanson

Look what they done to my song, ma
Look what they done to my song
It's the only thing I could do alright
and they turned it upside down oh Ma
Look what they done to my song.

Words and Music by Melanie Safka