quarta-feira, 29 de junho de 2011

Livros

Convidado pelo jpt, e posteriormente pela IO, tenho há quase uma semana em mãos um 'inquérito' acerca dos livros que leio, os que mais me impressionaram, aqueles que não li mas acho que gostaria de ler, etc.
Uma pesquisa cá no fundo, indiscreta, apreciados pretextos para (fazerem-me) sair do casulo e contar como estão lá arrumadas as divisões, que bibelots literários herdei à vida e tanto os detesto como os amo, e quais gostava de ver transitar pela janela, numa e noutra direcção. Um tour profundo, isto de falar nos nossos livros... Pronto, é hoje :-)

Ideia prévia: O que lêmos é um único livro, e a mudança de capas são só capítulos que se sucedem. Igual à vida que desfolhamos, molhando o canto das páginas com a saliva do nosso rasto, esta pégada ecológica da nossa personalidade. Essa deles, esta nossa vida. E que lêmos, e que a escrevemos em mudez extasiada quando lêmos nos demais o plágio da nossa reles universalidade.

O questionário:

1 - Existe um livro que leste e releste várias vezes?
2 - E algum que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste lê-lo até ao fim?
3 - Se escolhesses um livro para ler para o resto da tua vida, qual seria ele?
4 - Qual gostarias de ter lido mas, por algum motivo, nunca leste?
5 - Que livro leste cuja ‘cena final’ jamais conseguiste esquecer?
6 - Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?
7 - Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?
8 - Indica alguns dos teus livros preferidos.
9 - Que livro(s) estás a ler neste momento?


...e o inevitável apelo à melguice das correntes, seu combustível:

10 - Indica dez amigos para o Meme Literário

Então, respondendo às golfadas, é:

1- Não, creio que não. Um ou outro várias vezes se ameaçaram tornarem-se bíblias mas felizmente houve sempre algum novo que se interpôs. Há aquela ideia de, "quando tiver tempo", reler alguns. Até porque o que se vai lendo de impressões acerca deles não coincide com a nossa memória, e deveria apurar até que ponto os ídolos se mantêm ídolos conforme a idade nos passeia, ou se a malandra da velhice, ciumenta, nos torna ateus às glórias da juventude.
2 - Eu tenho um exemplo clássico quando penso nisto. Não é um romance, é uma daquelas secas que usei como cilícios cerebrais quando pensava-me beato e acreditava tornar-me monge do então grande templo m-l: A Sagrada Família, de Engels, um calhamaço que recordo com talvez umas quinhentas páginas e que se me revelaram inatingíveis pois, confesso, nunca passei das primeiras cinco ou dez. E palavra que voltei atrás e recomecei vezes e vezes, sem assimilar que não se consegue fazer um espectacular prato à chef sem primeiro saber fazer, exemplito, uns belos refogados. Andava quase sempre pedrado naquela época, como raio ia entender aquilo?
3 - É impossível responder a esta. Impossível! Todos os livros que achei muito bons tive sempre pena de ter-lhes chegado ao fim. Um para o resto da vida? Teria de ser muito muito grande e muito bom. Não conhecendo ainda esse pantagruel, qualquer um dos 50 ou 100 que poderia nomear servia. Mesmo se dos fininhos, como este. ou um bom dicionário, pré AO...
4 - Todos os bons que ainda não li, e de certeza que são muitos. Sempre que termino um de que gosto sinto isso mesmo: «menos um...» ... dos que devia ter lido antes e ainda não o fizera. Uma nota acerca dos 'clássicos' literários: sem tempo para eles. É que escreve-se tão bem, há tanta gente a escrever bem - agora, neste mesmo momento - que, palavra, não tenho tempo para ler mais. Se me calharem em mãos certamente que 'marcharão'. Mas procurá-los, deliberadamente? Não.
5 - Outra que não sei responder facilmente. A 'cena final', portanto o desfecho do romance? Pior ainda se num thriller (e há alguns muito bons) carregado de suspense?... Esta é outra onde estou assim... Talvez (talvez) este, mas a resposta não é totalmente sincera pois recordam-se-me fortes razões laterais a acontecerem enquanto o lia (e tudo ligado, incluindo o motus de lê-lo) e que condicionaram a emoção que senti ao terminá-lo.
6 - Sim, desde muito pequeno. Tenho uma irmã mais velha e o meu pai lia muito (policiais principalmente). Isso tornou acessíveis os livros 'sem bonecos'. Li o calhamaço d'O Conde de Monte Cristo teria dez ou muito pouco mais. É o primeiro 'grande' que me lembra ler. Fiz o périplo completo, acho: a série 'Os cinco', os Ivanhoe, David Crokett, Três Mosqueteiros, Vinte Anos Depois, etc etc, à minha irmã li o 'Mulherzinhas' (e gostei) e mais alguns, e o meu pai ia-me municiando com policiais da colecção Vampiro em que a sua censura prévia achava-os capazes «para a minha idade». Obviamente comecei a rapinar os escondidos no fundo do monte, que lia escondido na casa de banho, entusiasmadíssimo com os beijos e os amassos e o mais que se sugeria, e que eu recreava oniricamente enquanto ia descobrindo as maravilhas sensoriais do meu próprio corpo. Ah! Gostava muito dos James Bond e dos policiais do 'português' Dick Haskins.
7 - Há muitos que abandono, se dando ao autor uma honesta tentativa de me 'agarrar' ele não o consegue em, exemplo, vinte ou trinta ou quarenta páginas. Mas muitos ficam simplesmente adiados e mais tarde, muito mais tarde, até por vezes via uma referência lida, volto a pegar neles e a insistir na leitura. Ás vezes com óptimos resultados, outros com a confirmação de, para mim, aquele livro ser «uma boa merda».
8 - A resposta a esta é transitória: se mo perguntassem há dois meses atrás a resposta era diferente, e provavelmente se daqui a outros dois também não seria igual. Vou pôr a questão doutra forma: se eu alienar a minha biblioteca e tiver o capricho de reservar dois ou três, quais serão os indultados? Um, por razões que não se explicam a não ser por vaidade, é o meu. Depois um de poesia, daquela que se lê e relê e nunca está lida que chegue, tal a necessidade que sentimos dela. Sophia? Júdice? Provavelmente um de entre estes dois. O terceiro é A verdade em 1ª mão, de Joyce Cary, embora nunca relido há dezenas de anos se entranhou no meu espírito como um dos melhores romances que li. Li-o, recordo-me bem, na praia de Vila Nova de Milfontes. Ainda não existiam concertos nem quintas de alemães e holandeses tardo-freaks, a praia da Zambujeira tinha uma barraca que vendia frangos assados e pouco mais, mas já havia por lá praias onde se praticava nudismo (isto é só uma memória paralela: não foi nessas que o li mas na em frente à vila). Este é dos tais que mesmo sem dar com a sua lombada dou por mim a pensar 'n' vezes «tenho de lê-lo outra vez antes de morrer...» Gulley Jimson forever! ;-)
9 - Estou a ler 'A Conspiração contra a América', de Philip Roth, e a gostar, e dois de poesia: à cata dum poema de que me lembrava, e precisava dele, peguei no excelente Cartografia de Emoções, de Nuno Júdice, e já não o largo: afinal preciso dele todo, ao calhas, aberto, lido e saboreado como outro que 'tão bem me conhece que até faz poemas a pensar nos meus conflitos e nas minhas emoções'. E como mo confiaram no fim-de-semana passado, ando com a antologia poética de Eduardo White, 'Nudos', mas muito desiludido com o tratamento gráfico: estou em crer que não teve sequer uma revisão, tantas as gralhas. Além da fraca qualidade de papel (que prejudica muito as gravuras), etc, etc. Sobre o conteúdo: esperava outra coisa. Só lhe lera alguma poesia (gostara) e estava curioso. E pensava-o mais profícuo. Da prosa poética, não lhe conhecia quase nada. Tem momentos de 'excelência' mas outros que defraudam: sabe fazer melhor, vê-se pelo resto.
Aproveito a deixa e incluo um que terminei recentemente e me encantou. Eu sei que me maravilho facilmente, e as últimas impressões são sempre mais fortes. mas neste não me engano: um romance fabuloso, dos tais que findas as setecentas e tal páginas estamos indignados por não ter escrito outras tantas. Trata-se de Liberdade, de Jonathan Franzen. Um escritor e peras, garanto-vos!

10 - Não passo testemunho directo. Quem se agrade que faça. Se leia (se comente), e conte. Dos seus livros.

Ideias finais:

Nem tudo numa biblioteca é a verdade da ficção e pode engomar-se com crismas de "ilusão, imaginação, desejo, esperança" (sic muito restrito, Ernesto Sábato), ou, muito menos, cabe na estante de aforismos inacreditavelmente uga-uga que usa por rótulo «isto é assim e o resto é literatura». Não, não, nunca! Quando se edita deve pensar-se que haverá leitores ao escrito, esvai-se a auréola das fantasias secretas e o livro está ali, ali e não se pode ignorá-lo, mesmo que pela desilusão e a sua leitura seja abandonada. O autor não é escravo do leitor, a sê-lo sê-lo-á da sua personalidade literária. Mas ao mandar para o prelo o que sabe que é um mau título sabe igualmente que está a empurrar o seu leitor para a solidão às suas palavras. O que coloca em causa o que elas valem para si mesmo, autor. A relação entre ambos. Ou deveria colocar.


Qualquer memória escrita é um museu de jóias e nem esses - os maus livros - deito fora, mas nesta benevolência não mexo um acento ou uma letra na ordenação bibliotecária que os autores lhes deram: ficção, ensaio, poesia, ou autobiografia nua e sem temperos. Eles lá sabem das suas palavras e de como se escrevem ou escreveram, eu só os leio e penso. Perdoar a um autor um mau título no meio duma obra rica é tão fácil como é impossível esquecer-lhe o tal lido que nos impressionou, na versão má das impressões; não se esquece, nem que seja ostracizado para as mais distantes estantes e os olhos não se cruzem facilmente com a má lombada. Afinal é um livro, alguém cujo íntimo foi por nós lido, e o arrastar de unhas no nosso peito enquanto se viravam as páginas até à desistência dói por muitos e muitos... outros (livros) que se lhe sucedam e nos sigam, literariamente mais cordatos com a ideia encaquestada por recordações boas do que é uma boa relação com um autor e a sua leitura. Não se apaga mesmo que se lhe perdoe: é um livro, e permanece.

(...e tanta vez a melhor relação com os livros é uma relação de silêncio... até surgir um questionário que nos espicaçe)

sábado, 25 de junho de 2011

Palavras cruzadas, emoções baralhadas




texto integral da comunicação que fiz ontem no "IV Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora" , realizado no auditório da junta de freguesia de S.Domingos de Rana, em Carcavelos.

"Palavras cruzadas, emoções baralhadas"

Olá, boa tarde. Sou o Carlos Gil e vou falar-vos de amor. Amor a uma cidade.

É comum explicar o amor a África por aqueles que lá viveram, afirmando que quem foi por ela beijado nunca esquece esse carinho.

Eu não fui beijado, foi mais profundo. Fui seduzido, e desse amar violento a uma cidade guarda a memória carícias de que não me evado nem emigro, é tão envolvente como o é uma paixão.

E que se vive no remanso do silêncio, até um dia em que a caneta se torna insuportavelmente lenta para contar. Em que se pára, o olhar preso na tristeza de tão pouco teclado para tanto que há para exprimir e compreender…

A minha cidade… Pérola do Índico, minha princesa … … Namorei-a, amei-a à exaustão, e emocionalmente ainda me sinto exaurido pela separação.

-/-

Divorciamo-nos há trinta e tal anos atrás. Um amor adolescente, um namoro em que as mãos dadas e as carícias trocadas fizeram-me suspirar por mais, acasalamento e de papel passado uma tarde rabiscado numa avenida que desce a colina e beija-a no ventre, Baixa da cidade, onde o Homem ergueu orgulhosos trinta e tal andares, para dizer à linha da paisagem, em grito de posse para a amante fiel e tolerante que tudo lhe dá e permite, que a sua ambição é grande, alta, excessivamente alta.

Antes do divórcio que desalinhou o nosso entrelaçado de afagos, eu e ela, musa cidade, namoramos sem fim nem jeito nas esquinas que me eram familiarmente sensuais, esquecidas as convenções nas partilhas de amor que trocámos ao seu sol, nesse sopro quente que clamava por quinhões de emoções que não lhe regateámos.

Era um amor doce, beijos sem fim trocados na suavidade da brisa que subia da baía e amenizava fins de tarde tropicais, outras vezes impetuosos no travo de sal das portas do mar onde nos sentávamos, juntos, próximos, amantes, jurando cumplicidades e sorrindo ao viver.

Sim, estávamos apaixonados e o nosso namoro era tão lindo como o amor que líamos nos nossos olhos quando nos encarávamos e sorríamos, enlevados na nossa paixão.

E, cá de longe, do tempo das cãs e das memórias, deixo soar o meu enamoramento eterno e escrevo-lhe cartas de amor e de desejo sem fim.

Mas igualmente me interrogo:

Perdoar-me-á algum dia?

As esquinas recordar-me-ão?

Faremos amor novamente, pois o que tínhamos era tão belo e intenso que não podia ser senão uma posse amorosa, contínua?

-/-

Hoje, os tais trinta e tal anos depois, mais coisa menos arrufo, ainda não gosto de falar no divórcio. Prefiro afagar em mim o enlevo das carícias da memória, as mãos dadas, os suspiros e as juras que trocávamos.

Compreendes-me, querida?

-/-

Como dizem os antigos e que muito conhecem destas coisas dos amores perdidos, não há verdades únicas nas separações, e é difícil arrolar razões e encontrar culpas exclusivas quando os dedos se separam, e deixa de se sentir o conforto da sua carícia. Quando o romance termina e desocupam-se os dias de calores como aqueles em que o nosso namoro foi farto, quando sobrevém às noites quentes o frio da solidão.

Não, nem palavras de traição são alçáveis, excessivas na injustiça de tanta letra dura para contar das lágrimas, o tempo que passa, a separação. Aconteceu, os deuses entenderam que o nosso romance precisava de mais provas, outro fogo que não o que nos aquecia na ânsia dos jovens amantes, e ele soçobrou; o nosso casamento, pueril, reprovou-se a tal prova e chumbou o enlace que se jurara eterno.

Conheci outras cidades e outros leitos, mais amores, e valha a verdade em contar que, neles, também fui feliz. Noutros colos e noutras ruas também amei e o meu sorriso surgiu natural ao acariciar seios-colinas, nas águas doutras praias e na sombra doutras árvores, na crosta urbana doutras terras, também ternas na sua secular carícia, sapiente, amei e fui feliz.

Mas há estes momentos de melancolia em que olho o passado e recordo o primeiro amor, e cai-me uma lágrima de saudade.

-/-

Hoje, vida feita e semi-gasta, com tanto balanço encerrado e de contas ajustadas, há em mim uma janelinha que não se cerra: abro o peito e espreito, e vejo-te a ti minha primeira amada. Vejo-te, minha cidade.

Se me olho ao espelho e tento ler as rugas, decifrar as cãs, desisto de nelas contar as desilusões, e deixo o olhar perder-se no brilho dos olhos quando a memória em ternura te contempla, as avenidas, o caniço, as acácias tão rubras como quente era o nosso enlevo.
Fazes-me falta
neste Outono da vida, meu amor. Sinto a falta do teu bafo quente, o brilho do teu sorriso, da magia que era acordar de mãos em ti enlaçadas e acreditando na eternidade da nossa paixão.

Desculpa-me pelo que errei, pelas minhas culpas na nossa separação. Desculpa-me. Porque ainda te amo. Pelo tempo passam outras que me amam e me tratam bem, mas confesso-te em letra de lei que, em mim, ainda não aconteceu amor como o nosso primeiro. Desculpa-me meu amor, Princesa, minha cidade.

-/-

Termino com um poema porque ninguém é mais universal que um poeta. Nuno Júdice:

Mas eu sabia tudo isso. Um poema faz-se para
dizer o que não se soube evitar, para substituir
confissões e decepções, para transformar em algo
de belo o que poderia conduzir à depressão,
ao fim de um mundo. Na verdade, há
ou não espaço para esta inquietação, para
a censura, a suspeita de que algo poderia ser
de outro modo, como se cada um de nós pudesse
ter o seu próprio caminho? Falo contigo: e
tu ouves-me, não me ouvindo, como eu te ouço
sem saber se é o que eu quero ouvir que vem
das tuas frases, ou se dizes o contrário do que
sentes para que eu sinta a verdade do que nenhum
de nós sente - a indiferença, a brancura da
emoção, um desejo de ruptura... Como se o amor
acabasse no meio do que não começou; ou
a distância pudesse apagar o que não tem fim.