quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010



USS Wasp

Uma abordagem ao Fantástico

Ultimamente muito se tem falado de Julio Cortázar, quer por via da reedição (abençoada! o que te procurei e pedinchei!...) de Rayuela, quer pela edição de A volta ao dia em 80 mundos. Quase tanto como das ameaças à liberdade de imprensa.

Mas vamos por partes. Do livro de contos Bestiário (a ser igualmente reeditado, é promessa lida) transcrevo "Casa Ocupada". Do Primeiro trata-se a seguir à leitura.

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Gostávamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (hoje as casas antigas sucumbem à mais vantajosa liquidação dos seus materiais), guardava as recordações dos nossos bisavós, avô paterno, nossos pais e toda a infância.
Irene e eu habituámo-nos a persistir nela sozinhos, o que era uma loucura, pois nessa casa podiam viver oito pessoas sem estorvo. Fazíamos a limpeza de manhã, levantando-nos às sete, e por volta das onze deixava a Irene os últimos quartos para arrumar e ia para a cozinha. Almoçávamos ao meio-dia, sempre pontuais; já não havia mais nada para fazer além de lavar alguns pratos sujos. Era agradável almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e como conseguíamos mantê-la limpa. Por vezes, chegávamos a crer que fora ela que não nos deixou casar. Irene correu com dois pretendentes sem grande motivo; quanto a mim, Maria Ester morreu antes que chegássemos a estar comprometidos. Entramos nos quarenta anos com a inexpressiva ideia de que o nosso simples e silencioso casal de irmãos era o necessário encerro da genealogia instituída pelos bisavós em nossa casa. Morreríamos ali um dia, vagos e fugidios primos ficariam com a casa e haveriam de deitá-la ao chão para enriquecerem com o terreno e os azulejos; ou seríamos nós a demoli-la justiceiramente antes que fosse demasiado tarde.
Irene era uma rapariga nascida para não incomodar ninguém. Além da sua actividade matinal, passava o resto do dia no sofá do quarto a fazer malha. Não sei porque fazia tanta, julgo que as mulheres fazem malha quando encontraram nessa actividade o grande pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, fazia sempre coisas necessárias, camisolas para usar no Inverno, meias para mim, mantas e coletes para ela. Às vezes fazia um colete e depois desfazia-o num instante porque não lhe agradava um pormenor; era engraçado ver no cesto o monte de lã encrespada que resistia a perder a sua forma de algumas horas. Aos sábados ia eu ao centro comprar lã; Irene confiava no meu gosto, concordava com as cores e nunca tive de devolver meadas. Aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar vagamente se havia novidades da literatura francesa. Desde 1939 que não chegava nada de importante à Argentina.
Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem a malha. Pode-se reler um livro, mas quando uma camisola está acabada não se pode refazê-la sem espanto. Um dia encontrei o último gavetão da cómoda de cãnfora cheio de lenços brancos, verdes, lilases. Estavam com naftalina, empilhados como na mercearia; não tive coragem de perguntar a Irene o que pensava fazer deles. Não precisávamos de ganhar a vida; todos os meses chegava a renda das propriedades e o dinheiro aumentava. Mas Irene apenas se entretinha a fazer malha, mostrava uma destreza maravilhosa, e eu deixava passar as horas a ver-lhe as mãos como ouriços prateados, agulhas que iam e vinham e um ou dois cestinhos no chão onde os novelos se agitavam continuamente. Era lindo.

Como não recordar-me da distribuição da casa. A sala de jantar adornada com figuras, a biblioteca e os três quartos grandes ficavam na parte mais retirada, voltada para a Rodríguez Peña. Apenas um corredor com uma porta maciça de carvalho isolava essa parte da ala dianteira, onde havia um quarto de banho, a cozinha, os nossos quartos e a sala de estar, com que comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um saguão de ladrilhos trabalhados e uma porta de guarda-vento dava para a sala de estar. De modo que se entrava pelo saguão, abria-se o guarda-vento e passava-se à sala de estar; dos lados estavam as portas dos nossos quartos e à frente o corredor que conduzia à parte mais retirada; avançando pelo corredor passava-se pela porta de carvalho e mais além começava o outro lado da casa, ou então podia-se voltar à esquerda precisamente antes da porta e continuar por um corredor mais estreito que levava à cozinha e à casa de banho. Quando a porta estava aberta, percebia-se que a casa era muito grande; caso contrário, dava a impressão dum apartamento desses que se cronstroem agora, onde se anda com dificuldade; Irene e eu vivíamos sempre nesta parte da casa, quase nunca íamos para lá da porta de carvalho, salvo para fazer a limpeza, pois é incrível como o pó se junta nos móveis. Buenos Aires será uma cidade limpa, mas isso deve-se aos seus ahabitantes e a mais nada. Há demasiada terra no ar, mal sopra uma brisa vê-se o pó nas cómodas e nos losangos das toalhas de macramé; dá trabalho tirá-lo completamente com o espanador, voa e suspende-se no ar, um minuto depois volta a poisar nos móveis e nos pianos.

Lembrar-me-ei sempre com nitidez, porque foi simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava a fazer malha no seu quarto, eram oito da noite, e de repente lembrei-me de pôr ao lume a vasilha para o chá-mate. Fui pelo corredor até encarar com a porta de carvalho, e dava a volta ao cotovelo quando ouvi qualquer coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como um tombar de cadeira no tapete ou um abafado sussurro de conversação. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que conduzia daquelas divisões até à porta. Encostei-me à porta antes que fosse demasiado tarde, fechei-a depressa apoiando o corpo; felizmente a chave estava posta do nosso lado e além disso corri o grande ferrolho para maior segurança.
Fui à cozinha, aqueci a água e, quando regressei com a bandeja de mate, disse a Irene:
- Tive de fechar a porta do corredor. Ocuparam a parte do fundo.
Deixou cair a malha e olhou-me com os seus graves olhos cansados.
- Tens a certeza?
Assenti.
- Então - disse apanhando as agulhas - vamos ter de viver deste lado.
Eu fazia o mate com muito cuidado, mas ela demorou um pouco até recomeçar o seu trabalho. Recordo-me de que fazia um colete cinzento, eu gostava muito desse colete.

Nos primeiros dias custou-nos, porque ambos tínhamos deixado muitas coisas de que gostávamos na parte ocupada. Os meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene tinha saudades dumas toalhas e dum par de pantufas que tanto a agasalhavam no Inverno. Eu tinha pena do meu cachimbo de ébano, e julgo que Irene pensou numa garrafa de hesperidina com muitos anos. Frequentemente (mas isto só aconteceu nos primeiros dias) fechávamos qualquer gavetão das cómodas e olhávamos um para o outro com tristeza.
- Não está aqui.
E era outra coisa a juntar ao que tínhamos perdido no outro lado da casa.
Mas também tínhamos vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, mesmo levantando-nos tardíssimo, às nove e meia, por exemplo, não tinham dado as onze e já estávamos de braços cruzados. Irene acostumou-se a ir comigo à cozinha e ajudava-me a preparar o almoço. Pensámos muito e decidiu-se isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinhava pratos frios para comer de noite. Ficámos contentes, porque é sempre desagradável ter de se abandonar os quartos a altas horas e pôr-se a cozinhar. Agora resolvia-se com a mesa no quarto de Irene e a reserva de comida fria.
Irene estava feliz porque tinha mais tempo para fazer malha. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir a minha irmã, pus-me a rever a colecção de selos do papá, e isso serviu-me para matar o tempo. Divertíamo-nos muito, cada um com as suas coisas, quase sempre reunidos no quarto de Irene, que era o mais cómodo. Às vezes Irene dizia:
- Repara neste ponto de que me lembrei. Não faz lembrar o desenho dum trevo?
Minutos depois era eu que lhe punha à frente dos olhos um quadradinho de papel para que apreciasse o valor de algum selo de Eupen e Malmedy. Estávamos bem e, pouco a pouco, começámos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.

(Quando Irene sonhava em voz alta eu acordava logo. Nunca pude habituar-me a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos, e não da garganta. Irene dizia que os meus sonhos consistiam em grandes sacalões que às vezes faziam cair o cobertor. Os nossos quartos tinham a sala entre eles, mas de noite ouviam-se todos os ruídos da casa. Ouvíamo-nos respirar, tossir, pressentíamos o gesto que leva ao botão do candeeiro, as mútuas e frequentes insónias.
À parte disso estava tudo calado na casa. De dia eram os ruídos domésticos, o raspar metálico das agulhas de fazer malha, um ranger ao virar as folhas do álbum filatélico. A porta de carvalho, creio tê-lo dito, era maciça. Na cozinha ou no quarto de banho, que ficavam ao lado da parte ocupada, púnhamo-nos a falar em voz alta, ou Irene cantava canções de embalar. Numa cozinha há demasiado ruído de louça e vidros para que outros sons a invadam. Muito poucas vezes nos permitíamos ali o silêncio, mas quando regressávamos aos quartos e à sala de estar, então a casa ficava calada e à média luz, até caminhávamos mais devagar para não nos incomodarmos. Julgo que era por isso que de noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu acordava logo.)

É quase repetir o mesmo, salvo as consequências. De noite tenho sede e, antes de nos deitarmos, disse a Irene que ia à cozinha buscar um copo de água. Da porta do quarto (ela fazia malha), ouvi um ruído na cozinha; talvez na cozinha ou talvez no quarto de banho, porque a esquina do corredor abafava o som. A brusca maneira de me deter chamou a atenção de Irene, e veio até ao meu lado sem dizer nada. Ficámos a ouvir os ruídos, notando perfeitamente que eram deste lado da porta de carvalho, na cozinha ou no quarto de banho, ou no próprio corredor onde começava o cotovelo, quase ao nosso lado.
Nem sequer nos olhámos. Apertei o braço de Irene e fi-la correr comigo até à porta do guarda-vento, sem olharmos para trás. Os ruídos ouviam-se mais fortes, mas sempre abafados, nas nossas costas. Fechei rapidamente o guarda-vento e ficámos no saguão. Agora não se ouvia nada.
- Ocuparam esta parte - disse Irene. Tinha a malha pendurada nas mãos e os fios iam até à porta e perdiam-se debaixo dela. Quado viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou a malha sem a olhar.
- Tiveste tempo de trazer alguma coisa? - perguntei, inutilmente.
- Não, nada.
Estávamos com o que levávamos vestido. Recordei-me dos quinze mil pesos no armário do meu quarto. Agora já era tarde.
Como me restava o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Rodeei com o braço a cintura de Irene (creio que ela estava a chorar) e fomos assim para a rua. Antes de nos afastarmos tive pena, fechei bem a porta de entrada e atirei a chave ao esgoto. Não fosse algum pobre diabo ter a ideia de roubar e entrasse na casa àquelas horas, com a casa ocupada.

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E pronto. Do Primeiro ajuda a tomar-se conta AQUI. Quando for altura dos papelinhos aceitam-se votos por execração da pústula. Ou de ódio. Ou sem cor definida. Querem-se é suficientes, que há ruído no corredor e a casa é nossa.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Gritoacanto




eu canto as gentes vivas e as ausentes
as coisas por fazer ou já desfeitas
as empenas das casas levantadas
as empenas das casas esqueléticas

o vento a flor a pedra a dor a chuva
o perfil a palavra a mão a fome
o verme o pássaro o insecto a nuvem
e o mar e o grito e o pão que o tempo absorve

mas sobre tudo eu canto ai sobre tudo
este morrer de amar cada segundo
horizontes por que me desfiguro
à mortal palidez de um céu inútil

Glória de Sant'Anna, Gritoacanto 1970-1974, Cooperativa Árvore, 2010