sábado, 30 de maio de 2009

a desforra do silêncio

o YouTube ("Não é possível apresentar a página") desligou da ficha o cabo de perlim-pim-pim: apagão geral (nos blogues) dos videos lá sacados. não só "os musicais": todos. uma geraldina. promete ser giro.
...como se dum momento para o outro todas as televisões se apagassem e nas salas reinasse um silêncio que fora deportado por imposição da chinfrineira. como se viverá, "tão calmos"? :-))
promete ser giro. eu? não me lamento pelos que meti por aí abaixo e foram à viola. verdade verdadinha, gosto de ler em silêncio e sem desenhos animados a distrair.




em tempo de realidades: infelizmente isto é tudo um negócio, e dos gordos. hão-de resolver. infelizmente... porque ia ser giro. um dos meus desejos quando me sonho a viver sozinho é não gastar um tostão num aparelho de tv.



Nem escrevê-la me apetece.

sábado, 23 de maio de 2009

Maio


"A crise da juventude, em todos os países modernos, tornou-se um assunto de preocupação oficial que só por si levaria o mais crédulo indivíduo a duvidar das possibilidades que a sociedade de consumo tem para integrar as pessoas. No caso-limite da constituição dos bando de adolescentes, é fácil verificar nos mapas que este bandos correspondem à localização das «grandes torres» de habitação, sobretudo em países relativamente retardatários como a França ou a Itália, onde o acesso às condições de vida do capitalismo moderno, embora menos notório, tem efeitos muito nítidos ao ver-se multiplicado pelo factor particular que constitui o novo habitat. Os bandos organizam-se a partir do terreno baldio, que é o último ponto de fuga existente no «território ordenado», ponto este que podemos considerar como a representação sumária, num estádio primitivo desmunido de tudo, das zonas não ocupadas, designadas no nosso programa de urbanismo unitário como um desvio da ideia de «buraco positivo» em física.



Mais profundamente, e mesmo sem falar no fenómeno extremo dos bandos de jovens, verifica-se o falhanço total do enquadramento da juventude pela sociedade. Felizmente, o enquadramento familiar vai desabando, juntamente com as outrora asmitidas razões de viver, com o desaparecimento do mínimo de convenções comuns entre as pessoas (e, com razões de sobra, entre as gerações), partilhando ainda as gerações mais velhas fragmentos de ilusões passadas e vendo-se estas sobretudo adormecidas pela rotina do trabalho, pelas «responsabilidades» aceites, pelos hábitos resumidos ao hábito de não esperarem mais da vida. Podemos considerar os actuais bandos de jovens como o produto dum novo género de desmembramento das famílias em clima de paz e num elevado estatuto, se os compararmos aos bandos de crianças errantes da guerra civil russa, formados a partir da fome e da destruição física dos pais." (...)

"Esta sociedade do consumo e do tempo livre é encarada, na existência real, como sociedade do tempo vazio, como consumo do vazio. A violência que ela gerou (...) põe tão radicalmente em causa o uso da vida, que esta só poderá ser reconhecida, defendida e salva por um movimento revolucionário que explicitamente proponha um programa de reivindicações respeitante a este uso da vida em todos os aspectos.



Vai tornar-se cada vez mais difícil dissimular a temível realidade da juventude por detrás das lamentáveis equipas de actores profissionais que representam no palco da cultura a expurgada imitação desta crise, com os nomes de beatniks, angry young men ou, de modo ainda mais açucarado, nouvelle vague. Aquilo que há coisa duns dez anos era característico duma «vanguarda», indignando tanta boa gente (...) vê-se agora espalhado por toda a parte." (...)

"A I.S. formou-se, em larga medida, a partir duma experiência muito avançada do vazio da vida quotidiana e da busca da superação desse vazio. (...) A I.S. propõe-se lançar contra este mundo escândalos mais violentos e completos a partir da liberdade clandestina que se afirma, um pouco por toda a parte, sob o pomposo edifício social do tempo morto, apesar de todas as polícias do vazio climatizado. Sabemos qual é a sequência possível. A ordem reina e não governa."

I.S. nº 6, Agosto de 1961



"- Que significa a palavra «situacionista»?
Este termo define uma actividade que pretende fazer as situações, e não reconhecê-las como valor explicativo ou de outra índole. E isto a todos os níveis da prática social e da história individual. Substituimos a passividade existencial pela construção dos momentos da vida, a dúvida pela afirmação lúdica. Os filósofos e os artistas limitaram-se até hoje a interpretar as situações; trata-se agora de as transformar. Visto o homem ser o produto das situações por que passa, importa criar situações humanas. Visto o indíviduo ser definido pela pela sua situação, ele quer ter o poder de criar situações dignas do seu desejo. Nesta perspectiva, devem fundir-se e realizar-se a poesia (a comunicação como resultado positivo da duma linguagem em situação), a apropriação da natureza e uma completa libertação social. O nosso tempo vai substituir a fronteira fixa das situações extremadas, que a fenomenologia complacentemente se limitou a descrever, pela criação prática das situações; vai continuamente deslocar esta fronteira graças ao movimento da história da nossa realização. Nós queremos uma fenómeno-práxis. Não duvidamos de que isto será a banalidade primeira do movimento de libertação possível no nosso tempo. Que se trata de pôr em situação? A diferentes níveis, pode ser este planeta, a época (uma civilização, no sentido de Burckhardt, por exemplo) ou um momento da vida individual. Toca a entoar a música! Os valores da cultura passada e as esperanças de realizar a razão na História não têm outra sequência possível. O resto decompõe-se. O termo situacionista, no sentido da I.S., é exactamente o contrário daquilo a que se chama actualmente em português um «situacionista», quer dizer, um partidário da situação existente, um salazarista, neste caso."

I.S. nº 9, Agosto de 1964

... extraídos de "Internacional Situacionista - Antologia", Antígona - Editores Refractários, 1997

Aqui, diversos textos da I.S. e-disponíveis.

(imagens daqui, daqui, daqui, daqui e daqui.)

memórias & prazeres irracionais















Não é nada prático nem sequer bonito mas a sua mística é das especiais. Homenagem múltipla.




(Fotos by Google e arquivo pessoal sem registo do gamanço, videos do sítio do costume)

Wrestling

Não simpatizo muito com o bastonário Marinho Pinto porque acho que a táctica de metralhadora sempre na mão não é correcta, nem tão eficiente como o estardalhaço fará parecer.

Mas esta gaja há muito que merece um pano encharcado pelas trombas.



(via Arrastão)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Filipa :)


Páro as obras para dizer a bem longe, porque longe estás. Nem em voz alta nem em murmúrio pois sei que mesmo com distâncias de fusos, mesmo que nada escrevesse (mas quero!), ouvirás: parabéns filha.
É dia de aniversário, é dia de te cantar os parabéns. Além da festa canto baixinho porque ouvirás. Lêste-o no mail anterior ao último e nele falei-te no fundamental, o que se diz baixinho quando se lembra vinte e oito anos atrás e a sensação de que o mundo pára para assistir ao primeiro colo que se dá ao nosso bébé, de como num repente um rolinho de carne chorão, lindo, nos faz sentir gigantes, a pele e o arrepio bom do direito ao uso da palavra pai. Deste-me essa primeira emoção, primeiro por ela e depois pela alegria em seres como és: obrigado Filipa.

Deixo-te a mesma mensagem musical que em Abril deixei ao teu irmão.

sábado, 16 de maio de 2009

,



...diversas.

Mal haja telhado e paredes retomam-se os pormenores.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

"Alguém"



Tanto são dez anos que para carregar cinco coisas que os façam vividos eu levava alguém. Para que me servem cinco realidades materiais se o imprescindível é sentirmo-nos além do horizonte e para isso necessitamos de alguém a quem contá-lo e igualmente nos conte de si? horizontes que não deixem o nosso cegar-nos?

A faca do Rambo ou um canivete suíço, eis a dúvida (mas concerteza levava alguém). Talvez um chapéu para o sol e de certeza uma manta para as noites. Tabaco: um volume gigante, na habilidade de multiplicar a unidade e adiar o cumprimento da eterna promessa em abandoná-lo. Um litro de tudo que gosto, enroscadinho como nos aviões. Acarretava o catering completo numa malinha para não contar à unidade e ludibriar a espartana alfândega, as regras, esta maldita tentação que nos faz ilhas antes de nelas desembarcarmos. Cadernos, canetas, um bom dicionário. A faca do Rambo ou um canivete suíço, eis a dúvida e delas não saio pois, a contar, já fora de ilhas estamos rodeados de gadgets e sempre necessitamos de mais, mais, tantos mais que afinal são mais menos: faltam-nos horizontes contados, Alguém. Sim, levava alguém. Provavelmente o tal chapéu para o sol e de certeza a manta para as noites. Uma pessoa não é uma coisa, não é bagagem, mas é alguém e Alguém é sempre essencial. Homem ou mulher, que me rala. As boas companhias não têm género.

Dez anos é muito tempo e há mais de quarenta que deixei de me equipar para este proposto: quando li o Robinson Crusoé acumulei numa caixa de sapatos todo o essencial: canivete, abre-cápsulas, um rolo de fio de pesca e outro de arame fininho, o molhinho de cromos repetidos que iam ficando das colecções que se sucediam e abandonava, pois podia encontrar, lá, quem neles visse a luzidia tentação das ‘trocas’ – «tenho o Yaúca! e tu?» –, e a pistola de fulminantes por causa das feras. A minha mãe andou dias intrigada com a faca de cozinha que desapareceu: ela não sabia que nas ilhas desertas podem aparecer cobras e jacarés. Mas desta vez teria de me ficar pela faca do Rambo ou o canivete suíço: envelhecer é substituir as magias próprias pelas montras que nos dão. Uns tempitos depois li o Monte Cristo e as ilhas apareceram-me como ‘má onda’ e parei o acumular: precisava dum caixão para fugir e não via maneira de arranjar algum, e onde o escondesse que não caberia na caixa de sapatos.

E agora vem isto, e na caixa só está o cisma que sem dúvida levava alguém comigo. Para não ser ilha, dez vidas de degredo.


(imagem gamada aqui.)

quinta-feira, 14 de maio de 2009

(...)



Tenho estado em retiro. Volto esta noite, finda a novena.


(claustro, daqui.)

sábado, 9 de maio de 2009

Coisas antigas



É fim de semana e lá vai um carrito. Como o tempo está esquisito é um com capota. Dos "bons", de quando a gasolina era mais barata que o vinho e o aquecimento global só existia noutros calores, e com curas acessíveis houvesse ou sorte ou uma praia à mão (conforme o caso, digo, o calor).

Um Holden Monaro GTS. Na foto o modelo de 1970, igualzinho a um dos dois que à época existiam em Lourenço Marques e faziam-me dar vinte voltas em volta deles. Um era do maestro Artur Fonseca, e o outro (sem certezas) do Mesquitela da Matola.
(foto by Google, não me lembro de que site)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Ainda "a crise"

Não é gago.

Dream on!



Em boa verdade nunca fui um fiel dos Aerosmith. Simplesmente ouvia-se pouco nos meus círculos à altura em que a música ainda não me falecera. Calhou. Mas algumas ficaram nos ouvidos. E eles não são - não podem! - ser sempre indiferentes a ela, ao grito da vida.

(dedicada a quem compreende a poesia. sem links)

a escada das sextas


(imagem recebida por mail, integrada em 'pps' assinado "F.M." e com música dos Black Sabbath)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

"A canção do mangusso"



Finalmente a consagração, a imortalidade! fui youtubizado! e com Hino!

O Autor do Crime-Homenagem é este, meu amigo F., o Macua :)

thanks Joe!

a pandemia




Um olhar lúcido. Com a tal "razão de ciência" que faz a diferença quando o vozear se instala e olhamos em volta, à procura.
Clicar e ler, ler e compreender. O mau e o bom, a verdade científica que falta nesta confusão suína, perdoem-me os porcos.

(imagem daqui.)

?



Ando a lê-lo. Ou melhor: comecei agora. Veio by saldos mas aqui, onde gamei a foto, pode encomendar-se quase ao mesmo preço que paguei. Do folhear e do índice fica a ideia que está integralmente no feminino. O que compreendo face à(s) ditadura das maiorias. Mesmo assim acho redutor. Nunca gostei de exclusões baseadas no género, e são as andorinhas todas que fazem da Primavera vera.

meu vinho

Bebi meia garrafa de vinho que era novo
mas o seu sabor era tão velho como só eu sabia.

Bebi-o todo, todinho:
em vinte minutos bebi quarenta e
(e!!) cinco anos. De olhá-la, arrolhada.
Matei a sede? eu vi-lhe o fundo:
o verde ovalizado,
verdete pústula, pus velho
crosta que por ser meia,
a garrafa, de mim se escondia
(mas eu sabia...)

Depois deitei-me à sombra
de minha meia garrafa vazia.
Não sinto ressaca, dor ou alívio.
Bebi-os todos, gota a gota
quarenta-e-cinco-raivas
antes de ontem abri-la

e beber, beber
até ao verde ovalizado de meu fundo


(garrafeira privada, 6 de Maio de 2009)

terça-feira, 5 de maio de 2009

Esta História - Alessandro Baricco



Tanta vez dou, damos, a rodar páginas, frases, como que olhando a nossa vida vivida e os nossos sonhos. As tais vidas que uma é a vivida e outra é a sonhada. Tanta vez um momento especial daquela encontra eco nos sonhos que alguém nos escreveu, e numa frase paramos e soltamos o olhar nos aléns. Isto aplicável a qualquer enredo que seja, que se sequer a nossa vida vivida é uma longa recta que dizer então das curvas dos sonhos, as lombas dos pesadelos, os múltiplos dias e vidas que existem atrás das folhas dos calendários.

Veio parar-me às mãos por impulso. Terá pesado a imagem e o resumo da trama: sempre tive fascínio por automóveis e por história. Depois não o conhecia, nunca o lera, e nisso assemelho à vida onde tenho encontrado nas pessoas novas amores naturalmente antigos, e eu sem saber até então deles... Veio.

Esteve adormecido meses e meses, sei lá, talvez um ano. Para "aviar serviço" costumo ter entre mãos três ou quatro, ou cinco, livros ao mesmo tempo. Raramente um único. Entremeio os géneros para desenfastiar e para não abandonar precipitadamente algum que, a folhas tantas, esteja a maçar. Talvez engate mais tarde, e vai para debaixo da pilha que não é de desistências. Assim ela renova-se e chegou-lhe naturalmente a vez: igualmente por acaso: fui lá abaixo arrumar aviados e renovar stock e os olhos caíram-lhe na lombada e lembrei-me. Veio - a segunda vez.

Não parei. Ou quase, que durante as primeiras páginas um Bill Bryson como sempre bem-humorado acompanhou-o, mas rapidamente deixei-o algures a meio duma viagem e fui-me a ele sem parar mais. Como uma corrida, e que terminou esta noite. Leiam-no, raios! Veio e irá, qu'este é dos tais especiais que empresto a pessoas especiais se não tiverem sorte d'ainda encontrá-lo. Mas leiam-no, raios!

E obrigado, Senhor Alessandro Baricco: corri-o contigo, frase a frase. Tantas que estou como tu, e com início no fim da próxima linha «decidi neste instante que a partir do próximo livro (que assim ler) vou deixar de escrever agradecimentos».

(edição da Dom Quixote, 2007)

:(




Já não acredito...

segunda-feira, 4 de maio de 2009

kubiculando: eu vi



Contou pelos dedos três vezes, enquanto ia teclando. Entre a segunda e a terceira pediu uma cerveja.
À terceira contadela a cara abriu-se no sorriso de finalmente abençoada cervejinha fresquinha e escreveu - contou depois, eu ouvi: "Parabéns mas não é meu!"

fosga-se...




A vidinha tá lixada...

sábado, 2 de maio de 2009

A primeira vez

A minha primeira vez foi como são as primeiras vezes de tudo. Umas por acaso, outras planeadas e hesitadas no recomeço lento que antecede o primeiro passo quando ele será novo e sabe-se especial, o tactear aléns só sabidos em conjecturas sobre o seu açúcar ou o sempre possível amargo.

O primeiro café e a primeira cerveja foram desanimadoramente amargos mas hoje há luxúria quando a sua espuma me alaga os lábios. Já a primeira vez que o meu pedalar se aguentou sozinho levou-me do medo ao sorriso de quem triunfa sobre o trágigo futuro da inutilidade e ascende à divina sensação de que as asas existem e ele, futuro, será tão célere como aquela primeira e brilhante volta ao prédio, pedalando.

Sobrevoam estas linhas o primeiro beijo e a primeira experiência sexual, sei. Do primeiro lembro dois e é por essa fartura que daquela nada lembro além do provável local e custo. D'ambas, ambas o primeiro, fui beijado antes de beijar, assim como uma mão segurou-me o selim e gritou-me «pedala! pedala!» até perceber que se soltara e eu voava, até o corpo absorver aquele sabor novo de língua e quais asas a caminho de nuvens oferecer o sabor da minha, energicamente pedalando rumo às novas alegrias de aprender mais mundo sem uma mão a amparar.

Da outra primeira vez bem vasculho mas não encontro registos além de que aconteceu cedo demais, e em forma, sentido e vivido sem dúvida adulta demais. Sem paixão, sem amor, e por isso a esqueci e não consigo nem desejo encontrá-la, que depois que saltei da bicicleta para a motorizada é que aprendi o que é cair a sério, e todas as iniciações devem cumprir essas etapas rituais.



Os meus primeiros desenhos foram todos de carrinhos, que depois recortava e com eles corria as divisões da casa, feita longa pista de corridas de imaginar. Ainda antes da primeira cara que traçei recordo uma primeira inspiração filha das então minhas grandes realidades e onde sonhava que aprendia a voar - em local próprio: aquela varanda no primeiro andar da aerogare de Lourenço Marques era minha tardes inteiras sempre que podia e, lá, gravou-se dalguma forma a imagem imaginária que desenhei numa aula em que o tema tinha o nome lindo de "livre": círculos concêntricos com alvo no peito de alguém-ninguém, ao caso um homem que corre na pista de braços estendidos para abraçar e ser abraçado.

Os contornos estavam todos lá, ao de leve desenhados a lápis de cor uniforme, mas o que gritava ao olhar eram os círculos que desenhei a compasso, fortes e em tinta-da-china após uma aguarela cor de sol ameno cobrir por igual toda a folha, o avião e seus pormenores, o vulto sem face, mas de gabardine esvoaçando nesse dos primeiros gritar que primeiro aconteça sempre o beijo, o sabor da espuma nos lábios e os círculos centrando ao peito, e só depois pedalar.

Alguns anos mais tarde materializei um rosto e amei-o antes dele, ela, me beijar. O vulto do aeroporto ganhou rosto no desenho da minha imaginação. O homem que queria ser e antecipei à altura do no desenho, tela talvez na mesma idade em que precedi no primeiro dos dois primeiros beijos, corpo, queda e escoriação. Pois não é assim que se aprende a pedalar para sentirmos a glória da primeira volta ao prédio ou a embriaguez do sumo das nuvens que vem naquele salivar.

Fiz uma redacção de que me orgulhei pois a professora leu-a em voz alta à turma. Nela, cujo tema seria "Amizade" ou para aí puxei, falava sobre o meu vizinho e grande amigo Gilberto, o Bétinho, mais velho aqueles tantos anos que criam os heróis. Jogar na equipa dele era vitória certa pois era grande e hábil, um craque. Um serão sentado no muro a conversar com ele era mais que uma conversa, uma universidade acerca da vida dos grandes pois ele sabia de tudo e desses tudos muitos já os experimentara, inclusivé deixavam-no entrar em filmes onde eu nem me atrevia a tentar enganar o porteiro e ele contava-os, incluindo das miúdas giras que se viam nos intervalos e dos beijos que pairavam no escurinho, esseoutro filme no filme que se sabia existir mas só pela voz do Bétinho se conhecia em pormenor. E salvou-me algumas vezes de levar porrada, em triplicado meu herói. Foi uma redacção bonita e sem saber ou importar-me se, chamo-lhe de primeira vez.

E vou ficar por aqui nesta primeira vez de primeiras vezes. Pedalo sozinho mas nunca me esqueço de como o compasso centrou os círculos resituando no centro da memória o fundamental, a aguarela-sol apagando o mercurocromo nos braços que se estendiam para abraçar e, daqueles dois primeiros beijos, qual me ensinou como é lindo voar.


(a primeira imagem é daqui, a segunda vem do Voando em Moçambique da minha amiga Luísa Hingá, e a última foi gamada aqui.)

pô-lo de pé

Os tempos da ciência

O título é roubado. Ou melhor: inspirado. Há uma semana atrás não precisava de calendário. As notícias eram do século XXI. E as ruínas mais antigas vinham todas do XX. A crise. Obama. O desemprego e as fomes e as guerras. Michael Jackson. Os Deolinda. Sócrates, a drª Manuela e as pandilhas. O Papa era o mesmo de sempre mas calça Prada. Não havia dúvidas sobre o calendário, o relógio temporal, os bons e os maus e o limbo entre eles não era estranho. O Tempo, o meu e nosso tempo. Então alguém espirrou.

Numa semana aprendi que os tempos estão errados. Feiticeiros, fazem-me folhear páginas medievais. Máscaras de medo, espirros de desconfiança. A ciência está confusa porque perdeu-se num tempo, num espirro. Feiticeira frustrada não aje e as fogeiras medievais acendem-se: em Hong-Kong um turista espirra e um hotel é feito refém (reclamam por cerveja e tabaco: afinal não está tudo perdido); leio que nas 'ramblas' já se turispasseia de máscara e recordo-me que Michael Jackson usou-a mas nem com ela evitou que a ciência feiticeira o lixasse com um nariz meio símio meio pássaro.

Numa semana soube que há um novo olhar para o lado, Cancún: o do medo, medieval de medo. Medieval de pensar e temer e defender (amanhã punir?). Nos tempos da ciência de mísseis balísticos e clonagens e o diabo-a-sete, que dispara um alerta cinco colocando-nos uma máscara sobre séculos mentais e pré-disparando o psicológico seis, a fogueira.

Numa semana.


(imagem daqui.)

aforismos

"o são foge das lamúrias como o cão convive com as pulgas: coceira em excesso"


Charles Brenton Walters, romancista e dramaturgo (USA, 1855-1909)

Charlot



Gosto do Charlot. Há um Charlot em mim. Facto.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

extractos da vida


(...)

Quando o conde d'Ambrosio o foi buscar, no domingo seguinte, parecia novinho em folha. Libero Parri tinha-lhe puxado o lustro com uma sabedoria à qual não eram estranhos os anos passados a escovar vacas para a exposição anual na feira de gado. O conde comentou com um assobio de admiração, muitas vezes testado nos bordéis de meia Europa. Depois puxou de um saco de cabedal castanho e empurrou-o para Libero Parri.
- Abre.
Libero Parri abriu. Lá dentro estavam óculos, touca de pele, luvas, um lenço colorido e um blusão com uma etiqueta cosida que dizia: D'Ambrosio Parri.
- O que é que isto significa?
- Já ouviste falar em corridas de automóveis?
Libero Parri tinha ouvido falar. Coisas de ricos.
- Preciso de um mecânico para correr comigo. O que me dizes?
Libero Parri engoliu produzindo um ruído estranho.
- Não tenho tempo para isso. Tenho de trabalhar, eu.
- Quarenta liras por dia, mais as despesas e um quarto dos prémios.
- Prémios?
- Em caso de vitória.
- Em caso de vitória.
- Isso.
Depois ambos se viraram instintivamente para a porta, como que chamados por um ruído. Estava tudo silencioso, e a porta escancarada, e a soleira deserta. Ficaram um instante com o olhar ali parado, como que à espera. Ultimo passou pelo vão da porta, sem sequer dar por eles, preocupado em não deixar cair a lenha que segurava nos braços. Tal como tinha aparecido, assim desapareceu.
- Quem é que vai convencer a Florence? - disse Libero Parri.

(...)

- Eu trato da Florence.
Libero Parri desatou a rir.
- Tu não a conheces.
- É uma questão de segundos.
O conde D'Ambrosio esteve com Florence dez minutos, sentado à mesa da cozinha. Explicou-lhe o que eram as corridas, onde se faziam e porquê.
- Não - disse ela.
Então, explicou-lhe o que significava a celebridade no mundo dos negócios. E garantiu-lhe que diante daquela oficina, dentro de meses, passaria a haver fila.
- Não - disse ela.
- Porquê?
- O meu marido é um sonhador. E o senhor também é. Acordem.
Então o conde D'Ambrosio ficou um pouco a pensar. Depois disse:
- Quero contar-lhe uma coisa, Florence. O meu pai era um homem muito rico, muito mais do que eu. Desbaratou quase tudo para ir atrás dum sonho absurdo, algo relacionado com caminhos-de-ferro, um disparate. Gostava de comboios. Quando começou a vender as propriedades eu fui ter com a minha mãe e perguntei-lhe: Porque é que não o deténs? Tinha dezasseis anos. A minha mãe deu-me uma bofetada. Depois disse-me uma frase que agora você, Florence, tem de decorar. Disse-me: se amas alguém que te ama, nunca desmascares os seus sonhos. O maior, e ilógico, és tu.
Sem sequer esperar por uma resposta, despediu-se com grande cortesia e saiu para o quintal. Libero Parri estava a dar marteladas numa capota que tinha encontrado, há uns meses atrás, na berma da estrada para Piàdene. Tencionava fazer uma cobertura para o depósito de lenha.
- Está tudo resolvido - soletrou o conde, esfregando as mãos.
- O que foi que ela disse?
- Disse que não.
- Ah.
- Começamos no próximo domingo. Na Veneza-Bréscia - e começou a dirigir-se para o automóvel.
- Mas se disse que não...
- Disse que não mas pensou que sim - respondeu o conde, de longe.
- E tu como é que sabes?
- Como é que sei?
- Pois.
O conde D'Ambrosio parou. Ficou alguns segundos à procura da resposta. Mas não a encontrava. Virou-se. Deparou com Florence à frente. Só deus sabia como tinha chegado até ali. Falou em voz baixa, para que só ele ouvisse, mas soletrando as palavras. Com doçura.
- O seu pai não desbaratou coisa nenhuma, é um dos homens mais ricos de Itália, e provavelmente nunca ligou a caminhos-de-ferro. Quanto á sua mãe, duvido que alguma vez na vida lhe tivesse dado uma bofetada.
Fez uma breve pausa.
- Admito que a frasesinha sobre os sonhos não é má, mas frases dessas só são verdadeiras nos livros: na vida são falsas. A vida é terrivelmente mais complicada, acredite em mim.
D'Ambrosio esboçou um gesto que queria dizer Acredito.
- Seja como for, o senhor tem razão. Disse que não mas pensava que sim. Não lhe vou dizer porquê. Aliás, quer saber? não o digo sequer a mim própria, que é para ficarmos mais serenos.
D'Ambrosio sorriu.
- Veja se mo traz de volta para casa. Que vençam ou percam não me interessa para nada. Veja só se mo traz de volta para casa. Obrigada.

(...)

"Esta história", Alessandro Baricco, Dom Quixote, 2007