quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

contra o AO: a luz do bom-senso reforça-se


um apoiante individual do AO e membro do Governo que o recebeu em mãos e não o deitou para o lado.

diz que ainda há tempo para fazer as correcções que são necessárias - admitindo implicitamente que o AO como está está mal parido, defeituoso, com perfeitas parvoíces.

fala em "discussão de última hora", algo tardia. mas, a ele, nem quando tinha a liberdade de não pertencer a nenhum Governo, também a ele não se lhe ouviu a voz contra (mas agora fala assim). tardia para quase todos, JFV. poucos, na altura e até agora em que se começa a ver na prática o lindo resultado, alcançaram o alcance do radicalismo das modificações à nossa língua, à forma de escrevê-la - e futuramente de pronunciá-la.

e - muito bem! - insurge-se conta todos aqueles que sempre tiveram uma relação conflituosa com a escrita (e mesmo a dicção) do português, e agora surgiram a reclamar por fogueirinhas por VGM ter-se recusado a aceitar a adopção do 'aborto linguístico' na instituição cultural cuja boa gestão o Governo lhe confiou. a malta da bandeirinha e da campainha pavloviana, ou os amantes das manchetes do jornalismo de sarjeta, quase a sua máxima leitura e seu formador dilecto de opinião social.

afinal a esperança renova-se. ele, JFV, diz que ainda temos três anos. que, finalmente, sejam tempos profícuos no bem pensar. trata-se do futuro, não dá para brincar mais.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

andorinhas &...


mais um sábado morno. assolarado, manso, com quase tudo para ser um sábado ideal.
até as moscas estão de regresso, como lembra MEC na sua estupenda crónica, invariavelmente o melhor momento destes papéis. comovente, como sempre a assoprar-me a lágrima. como aquele homem sente!

como na edição online do Público está na secção "ricos", puxo-a para aqui:

-/-

"Antes das andorinhas"

Na quinta-feira vimos duas, primeiras papoilas. Eram pobres coisas, mais a caminho da morte que do fulgor, mas eram pioneiras da Primavera. Parámos o carro e fartámo-nos de fotografá-las. Nas fotografias ficam menos feias. Apareceram também umas moscas. Estavam desorientadas e nem sequer sabiam chatear. Eram mosquinhas suspensas no ar, como se numa peça infantil, pouco convincentes mas inofensivas. E vi um aranhiço recém-nascido na palma da minha mão. Esperam-se as andorinhas a qualquer momento. Onde é que elas voam?

23 de Fevereiro há-de ficar como o dia mais bonito desde Novembro passado. Foi uma tarde para guardar na memória, como promessa do que aí vem, quando levarmos com as chuvadas que andámos há meses a adiar.

O meu sogro Joaquim morreu no dia 23 de Fevereiro de 2008. No dia em que foi enterrado choveu em Lisboa como eu nunca tinha visto: uma chuva grossa que batia na terra, como se a odiasse.

Passou a ser um dia infeliz. Mas o tempo deixou de concordar com ele. Agora consegue-se pensar que este seria um dia que ele bem que gostaria de passar.

Ele nasceu em Fevereiro, em 1920, tal como o meu pai. O meu tio, o meu irmão e a minha sogra também nasceram em Fevereiro. Desde que morreram o meu tio, o meu pai e o meu sogro, até este dia de sol, em 2012, em que a Maria João esteve quase feliz o dia inteiro, pensava que Fevereiro era um mês triste. Esqueci-me de todos e de tudo que Fevereiro trouxe. Agora lembrei-me.

Miguel Esteves Cardoso

os nossos sofás de intranquilidade


a saúde dos idosos é um constante Ai Jesus. à minha frente, no sofá da sala, a minha mãe acaba de reclamar por mais uma manta por estar cheia de arrepios: acordou adoentada e até já desmaiou. de olhos fechados vai enchendo os nossos medos residentes de ais. são os nossos idosos, e os medos acordam sempre que eles adoecem.

Mandela também está a reclamar por um aconchego, por uma manta. Madiba é de todos nós, eu acho que é nosso familiar colectivo. não sei se a minha geração conheceu outro homem tão grande. eu acho que não. não teve ais mediáticos quando tinha todas a legitimidade em tê-los e soltá-los de forma a que ninguém os ignorasse. sossegou-nos medos colectivos com uma formidável lição sobre o perdão e a reconciliação. é nosso, Nelson Mandela, Madiba, é familiar de todos nós, é um velhinho que com gosto e até amor gostaríamos de ver nos nossos sofás. e chegávamos-lhe uma manta, tudo que nos pedisse.

tudo que nos pedisse: os ais são nossos, os medos são nossos. dos nossos.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

sem boina e sem capota


a Primavera está à dizer que não tarda e bate-nos à porta. embora ainda esteja um frio danado, o Sol cada vez arrebita mais. apetece andar de cabeça solta, despoeirada de mesquinhices invernais. ou boinas.

mas a outros a vida corre mal e nem o solito os anima. chegam a pensar em más soluções. kaput, etc. suicidam-s. e lê-se no jornal e às vezes sabe-se pelos cafés: aquele cansou-se e o enterro é amanhã.

e há os outros, os que conciliam o trágico com classe. classe milionária. nada de 605 Forte, nada de cordas penduradas na garagem, barrigada de fármacos, etc: com classe, e cabecita sempre ao Sol até ao Big Bang final: esses tiram a capota.

tiram-na, e espetam o bólide a até 431 km/h. sim, não tem gralha. é morte certa. vejam o sucedâneo moderno e rico da velhinha caçadeira de cano preso no queixo e gatilho disparado com o dedão do pé. sem capota.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

o bom chocolate (Manuela Margarido, poetisa santomense)



lido no papel foi uma delícia. daquelas de fazer juz ao nome. aqui? não menos. aberta a notícia cliquem individualmente nas diversas entradas. uma a uma, sabor e sabor renovados. diferentes. e os olhos, ó os olhos, como eles comem...

entretive-me em memórias logo na primeira entrada, aquela que fala e conta do chocolate de São Tomé e Príncipe. do puro. caixinha com amostras do verdadeiro chocolate santomense, nas suas diversas fases de formação. com guia de degustação, um manual que contava tudo em resumo, deixando os pormenores para o paladar que deveria seguir o 'guia', qual o primeiro pedaço a provar, qual o que se seguiria, etc.

e lembrei-me de quando a minha amiga Isabel "assunto" (lol) me ofereceu uma linda
bem, resta contar que foi num sábado especialmente quente, estacionamos para os lados de Santos (Lisboa, claro) na busca duma tasquita que fosse tão agradável que nos acolhesse e dessedentasse modicamente, e quando voltamos ao carro o calor tinha feito das suas pois a caixita ficara em cima do tablier. mesmo assim, a anatomia perdida, os pedaços de mel negro ainda souberam 'que'.

resta dizer ainda isto: à noite, estávamos a estacionar ao pé da Gulbenkian para irmos jantar ao "Polícia" (cordeiro no forno à moda de Lafões acompanhado dum tinto de estalo, lembro-me), ela recebe um mau telefonema: falecera quem lhe oferecera a ela a caixinha mágica, a poetisa santomense Manuela Margarido a quem entrevistara uma semana atrás, provavelmente a última entrevista que a diva das letras santomenses dera. e que lhe dera a caixinha. Manuela Margarido. foi uma voz nunca conformista, e a sua poesia denunciou o colonialismo e o regime de quase escravidão que vigorava nas roças de cacau e de café, nos anos 50's do ido.

as conversas que o chocolate trás...

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

este nosso thriller...


acreditam que corri os títulos (e um pouco mais...) dos principais jornais online, e a única notícia que me seduziu a trazê-la para aqui - pela história paralela... - foi a abaixo, do Banderas ir personificar Picasso?

a ficção anda a ser escrita sob formas excessivamente deprimentes. assim, a continuar assim, os "Man Booker Prize's" deste ano, todos, vão directos para o colo das autobiografias dos vagabundos da Economia :-(

pretensões, Pablo Picasso, Monsieur Pinot, Luís Fernando Veríssimo


...e a propósito desta notícia veio-me à memória uma história deliciosa sobre a proverbial forretice de Pablo Picasso, contada pelo delicioso escritor e cronista brasileiro Luís Fernando Veríssimo (saudade das suas crónicas no Expresso...), e que catei no seu "Comédias da Vida Pública", edição de L&PM (Brasil), de 1996, que comprei - segundo registo que na altura anotei - em 8 de Maio de 1997, por importação directa a meu pedido na livraria onde habitualmente me abastecia, recordo-o bem.

este acrescento serve para esclarecer que sempre gostei de ler autores brasileiros no seu português original, que isso nunca me fez cócegas além das naturais, e encantadas pelo encontro da riqueza da diversidade. mas adiante.

na crónica, de título "Pretensão", a fls. 228 do dito, LFV conta da fobia de Picasso em largar o pilim, usando como moeda os seus desenhos. por exemplo, quando amigos o visitavam e juntos faziam uma farra na tasca lá do sítio, já se sabia que Pablo nunca deixava ninguém pagar a conta, e, em rasgo já conhecido e do qual o taberneiro nada tinha contra pois depois vendia-os por valores muito superiores à "dolorosa", sacava da caneta e na própria toalha da mesa fazia uns rabiscos "à Picasso", e lá estava a conta paga. aliás, nos restaurantes perguntavam-lhe sempre se ele ia pagar ou assinar...

mas não é essa a história que me fez sorrir ao recordá-la, e que se ajusta ao título da crónica, embora noutra interpretação a moralidade que dela se extrai torne a justeza da sua aplicabilidade.... inversa. então conto: o bom do Pablo, quando mandava a empregada à loja fazer o avio do rancho, junto com a lista juntava sempre um desenho, mais ou menos aperfeiçoado conforme o tamanho da dita. e a coisa corria assim, aparentemente sem queixas de nenhuma das partes.

aparentemente, pois, duma vez, a empregada quando voltou com o cesto recheado entregou-lhe um papel dobrado, daqueles tipo de embrulhar bacalhau, e nele um desenho horroroso, nem uma criança falsamente precoce faria um desmimo daqueles. e vinha assinado: "Pinot" - o man da mercearia. «que raio é isto?» deve ter sido a exclamação de D.Pablo, a hesitar entre o horrorizado e o zangado, à empregada. e ela respondeu-lhe: «foi o monsieur Pinot que mandou, para entregar ao senhor. diz que é o troco».

bem, rezará a lenda e disso LFV fez eco público, com lombada e assinado, que D. Pablo Picasso nunca mais mandou a lista do avio sem as notas bancárias correspondentes. e eu pergunto-me, hoje em que por via desta notícia parti na busca da crónica e a reli com o prazer de quem encontra um velho amigo que já não vê há muito tempo, se LFV ao intitulá-la "Pretensão" a quem se referiria...

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

as locomotivas Garratt, o gene SRY, e as meninas e os meninos





«vocês são todos a mesma coisa! todos iguaizinhos!»

ouço-o desde pequeno. e antes de mim o meu pai e os meus avós, os de chapelinho chinês no ó, e certamente o meu filho varão o ouve e ouvirá. não há homem que se livre deste mimo de género quando as brilhantinas se chocam, entre eles e as suas sócias. seja por causa das meias no chão do quarto, da louça por lavar ou, principalmente aí, aí, quando a divergência de opiniões mete saias. nem que seja por uma miradela pelo rabo do olho aos lindos rabiosques que elas, "saias", deixam imaginar.

acontece que é verdade - quanto à parte das saias. não só nós homens somos todos iguais, como somos diferentes das meninas. que elas nos olham o rabito, na busca dum imaginário de nádegas tão poderosamente musculadas como será o motor duma locomotiva Garratt, a impulsionar êmbolos infatigáveis que arrastam lindas carruagens em viagens de êxtase, isso já é conhecido e assumido: o romantismo tem mais viagens de comboio em paisagens de sonho, cheias de maravilhosos túneis entre matas de lindo recorte, que se assume fora do conforto sigiloso desse sucedâneo barato do divã psiquiátrico que são os blogues femininos. anónimos, claro. acrescento que felizmente assim é (miradelas), pois somos briosos não só quanto ao palminho de cara e mais umas coisitas, mas também quanto ao que temos de chicha quando passamos e nos olham, dissimuladamente gulosas, nas passarelles desta vidinha que tanto nos upa-upa, anima.

somos iguais entre nós, "mangussos", e diferentes de vocês - o lado mais bonito da humanidade - no accionar do famoso click que faz trepar paredes, muros, e até janelas nos bons tempos galantes: connosco é mais rápido, tipo automático. convosco não. suponho que é por isso que o pavão faz aquele espalhafato todo quando quer galar uma garina pavoa. trabalheira, mas bonita trabalheira.

este fim-de-semana encontrei a explicação científica para a nossa igualdade... mangussal. na pág. 32 da Revista do Expresso, um dos itens do artigo de singelo título "24 horas à luz da Ciência", a entrada respeitante às 21:00 horas, di-lo, explica-o assim: (passo a transcrever, a edição online é omissa)

«ELES SÃO TODOS IGUAIS. É uma frase que você repete muitas vezes quando discute com o seu namorado ou com o seu marido, depois de um dia de trabalho. E quando desabafa depois com as amigas. Mas terá algum fundamento? A genética pode dar uma ajuda para perceber o que se passa, segundo Carlos Fiolhais e David Marçal no seu livro 'Darwin aos Tiros e Outras Histórias de Ciência'. Cada novo ser humano herda 23 cromossomas da mãe e 23 do pai. Destes 23 pares, há 22 com cromossomas iguais, que têm o mesmo conjunto de genes. O par que resta tem os cromossomas sexuais. Nestes, você herdou um cromossoma X da mãe, tal como qualquer homem. Mas herdou um cromossoma X do pai, enquanto um homem herdou um cromossoma Y. Aqui o que mais se destaca é o gene SRY, responsável pela masculinização do corpo e pelo envio de testosterona em larga escala para o cérebro. Os genes podem apresentar pequenas variações de homem para homem, mas o SRY é perfeitamente igual em todos eles. Existe, assim, "uma espécie de guerra de sexos molecular entre o cromossoma X e o cromossoma Y".»

e pronto, está explicado. somos "diferentes de vocês" mais fundo que o atlas anatómico conta. não são só os pés maiores que 'explicam' o mangusso. há mais, há o interruptor SRY que liga o turbo (às vezes num ápice tal, que as "forças G" provocadas nos deixam cegos e surdos...), e põe em marcha a Garratt nos trilhos dos sonhos, seguindo o seu único instrumento então apercebível: a bússola do seu íman genético, agulha então altivamente erguida, gloriosamente robusta, magnificamente masculina.

é o nosso SRY, meninas. felizmente! ;-)

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Wislawa Szymborska disse que não sabia se gostava de poesia


"Alguns gostam de poesia"

Alguns -
quer dizer nem todos.
Nem a maioria de todos, mas a minoria.
Excluindo escolas, onde se deve
e os próprios poetas,
serão talvez dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de massa,
gosta-se da lisonja e da cor azul,
gosta-se de um velho cachecol,
gosta-se de levar a sua avante,
gosta-se de fazer festas a um cão.

De poesia -
mas o que é a poesia?
Algumas respostas vagas
já foram dadas,
mas eu não sei e não sei, e a isto me agarro
como a um corrimão providencial.


Wislawa Szymborska, "Alguns gostam de poesia - Antologia", Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbroska (Cavalo de Ferro, 2004)

Wislawa Szymborska disse que o livro das ocorrências está sempre aberto ao meio








"Amor à primeira vista"

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.

Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?

Punhos de poeta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.

Wislawa Szymborska, "Paisagem com Grão de Areia" (Relógio d’Água, 1996)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

bordoada no politicamente correcto


não gosto das leituras políticas e sociais de José Manuel Fernandes, mas não me esquivo às palmas daqui transcrever esta sua nota, publicada no 'Público' de hoje:

...

"Thatcher, Merkel e o preconceito antifeminino de certa esquerda portuguesa"

Imaginemos que descrevíamos assim Mário Soares: político formado no Portugal provinciano e autoritário de Salazar, filho de um antigo presbítero. Seria verdadeiro mas também seria, no mínimo, preconceituoso. Contudo, é de uma forma semelhante que, por regra, Mário Soares se refere a Angela Merkel: "formada no Leste comunista alemão e filha dum pastor protestante", escreveu ainda esta semana no 'Diário de Notícias'. E o que é estranho, é ninguém se chocar. Será por Merkel ser alemã? Por ser mulher? Por a frase vir de Mário Soares?

Talvez por ter acabado de ver o filme 'A dama de ferro', a frase incomodou-me. Thatcher também era tratada como sendo "a filha do merceeiro" - há uma extraordinária cena em que um grupo de atarantadas luminárias do Partido Conservador mostra o seu incómodo por não conhecer o preço dum pacote de manteiga... -, apesar de ser, também, a filha de um antigo presidente de câmara (a quem, de resto, ouvimos um dos melhores discursos políticos do filme).

O preconceito antifeminino assume várias formas, e é especialmente gritante quando mulheres que chegam ao poder (Thatcher, Merkel, à nossa dimensão Manuela Ferreira Leite) o fazem sem concessões ao feminismo militante. Mário Soares, até porque já o sabíamos desde que, em 1999, perdeu uma eleição no Parlamento Europeu para Nicole Fontaine e a apodou de "dona de casa", não será até o melhor exemplo. Tão ou mais significativa era a forma como, no Largo do Rato, se tratava Ferreira Leite - "a bruxa" -, algo inconfessável em público mas revelado nas escutas do 'Face Oculta'. Também então muitos reagiram com condescendência. Sobretudo à esquerda. Sobretudo entre os campeões do politicamente correcto.

Ao pé dos preconceitos antifemininos reinantes em boa parte da elite portuguesa, os preconceitos dos barões do Partido Conservador britânico no tempo de Margaret Thatcher são coisa de aprendizes. Basta puxar pela língua ao ícone dos ícones, Mário Soares...

...

aliás, bato-lhe palmas com o entusiasmo que se dedica às galhetas que amarfanhem as nossas raivas de estimação. neste niquito de prosa venenosa, magoando bem além do político Mário Soares (até o prezo...), recolhido como exemplo - pôs-se a jeito... -, essa cretinice que se insinua, conspurcando, algumas mentes que bem podiam ser o que não são nem nunca serão, com ela: o vírus cobardolas do politicamente correcto, pecha prima direita da escrita com aparo, tinta e palas exclusivamente recrutadas na militância.


(imagem sacada via Google Imagens)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Wislawa Szymborska (1923-2012)




"Gato num apartamento vazio"

Morrer não é coisa que se faça a um gato.
Que há-de um gato fazer
num apartamento vazio?
Subir às paredes?
Roçar-se nos móveis?
Aparentemente não mudou nada
e no entanto está tudo mudado.
Continua tudo no seu lugar
e no entanto está tudo fora do sítio.
E à noite a lâmpada já não está acesa.

Ouvem-se passos nas escadas,
mas não são os mesmos.
A mão que põe o peixe no prato
também já não é a que o punha.

Há aqui qualquer coisa que já não começa
à hora do costume,
qualquer coisa que não se passa
como deveria passar-se.
Havia aqui alguém que há muito estava e estava
e que de repente desapareceu
e agora insistentemente não está.

Procurou-se em todos os armários,
revistaram-se as estantes,
espreitou-se para debaixo do tapete.
Violou-se até a proibição
de desarrumar os papéis.
Que mais se pode fazer?
Dormir e esperar.

Quando regressar, ele vai ver,
ele vai ver quando chegar.
Vai ficar a saber
que isto não é coisa que se faça a um gato.
Caminhar-se-á em direcção a ele
como que contrariado,
devagarinho,
com patas amuadas.
E nada de saltos ou mios. Pelo menos ao princípio.


Wislawa Szymborska, in "O fim e o princípio"
(tradução de Manuel António Pina)

as Ruffles Roleta Vermelha são intragáveis sem acompanhamento líquido de, digamos, um litro por cada pacote de 45 gramas: pôem o nariz a pingar!

"Pelindaba"


no Expresso de ontem uma crónica de Mário Crespo onde, além das ilacções à nossa história contemporânea, visita pormenores pouco badalados da tormentosa história da África austral, pré-fim do apartheid.

como na e-edição o texto só está disponível para assinantes, vou dar-me à trabalheira.

"A conversa acabou"

Em 1984 fiz a reportagem da assinatura do Acordo de Nkomati. Um entendimento entre Samora Machel e Pieter Botha durante o regime do apartheid tinha sido considerado impossível. Em plena Presidência de Ronald Reagan, o secretário de Estado Adjunto para Assuntos Africanos, Chester Crocker, um académico de Georgetown, muito contracorrente, defendia o diálogo. Nos anos 80 a África austral era um pesadelo. Pretoria geria uma guerra aberta em todas as fronteiras e estava isolada do mundo por uma intransigente política de boicotes diplomáticos, económicos e culturais. O resultado prático de décadas de ostracismo foi o desenvolvimento local de uma indústria de armamento que culminou na construção, confirmada, de vários engenhos nucleares num complexo a uns 100 quilómetros de Pretoria. O local onde esta pesquisa foi conduzida chama-se Pelindaba. É uma palavra zulu. Quer dizer: a conversa acabou. E tinha acabado. Em 1977 o regime de Pretoria deflagrou dois engenhos nucleares em Vastrap no deserto de Kalahari. As explosões foram detectadas por satélites americanos e russos. Era um dado adquirido que Pretoria, mais ano menos ano, levaria o seu poder de destruição nuclear a Luanda e a Maputo. Foi à porta desse perigosíssimo pária nuclear que o enviado dum Presidente republicano foi bater propondo conversações de paz. Chamou ao processo Política de Envolvimento Constructivo (Constructive Engagement). Durante dois anos consecutivos falou com todos. Cubanos, russos, angolanos, moçambicanos e sul-africanos. Todos foram cedendo terreno e conquistando o respeito mútuo que se tinha perdido nas batalhas no Cuando-Cubango, na Gorongoza e nos corredores da ONU. O Acordo de Nkomati foi o primeiro sinal concreto de que o Envolvimento Constructivo de Crocker era a única via para quem queria a paz. No relato que fiz da assinatura do acordo na fronteira entre Moçambique e a África do Sul, registei uma conversa acidental entre Pieter Botha e Samora Machel. Falaram da terra daquela zona, que era vermelha, seguramente muito boa, disseram, para milho e para gado. Já não eram nem o bóer que tinha sido apanhado pela história num labirinto de segregações raciais inventadas pelo medo, nem o temível guerrilheiro cheio de cicratizes no espírito e no corpo deixadas pela escravatura colonial. Eram dois homens de uma terra que em paz dá milho e alimenta o gado que sempre foi o grande símbolo de riqueza em África. Depois desta conversa Nelson Mandela foi libertado, o apartheid acabou e a África do Sul desnuclearizou-se antes das eleições democráticas. Interrogo-me se não estamos a cometer mais um terrível erro histórico buscando, com assinalável despudor, os parceiros para negócios episódicos, exclusivamente, numa elite apanhada num labirinto da história de onde só vai conseguir sair quando se emancipar do vexame deste neocolonialismo financeiro. Para isso é preciso falar com eles. Todos. E não só com as aristocracias militares que as guerras coloniais impuseram a uma terra de gente admirável a todos os títulos.

"a guerra do fogo", e à volta disso: filmes e romances históricos


ainda hoje, talvez quase três décadas depois, "mijo-me a rir" ao recordar algumas cenas deste filme, onde a comédia era acessório bem-disposto e bem-vindo a uma visita pela pré-história do Homem.

tal como com os romances históricos, escritos com a seriedade duma boa pesquisa e misturando sem desvirtuar a trama ficcionada com aquela de suporte já firmado documentalmente, ver um filme "histórico" pode ser uma forma nada maçuda de aprendermos sempre um pouco mais. ou, pelo menos, acendermos novas luzinhas sobre uma matéria qualquer. não houve quem dissesse que cultura é o que sobra depois de esquecermos o resto?

lentium picoto


Tal há-de ser quem quer, com o dom de Marte,
Imitar os ilustres e igualá-los:
Voar com o pensamento a toda parte,
Adivinhar perigos e evitá-los,
Com militar engenho e subtil arte
Entender os inimigos e enganá-los,
Crer tudo, enfim, que nunca louvarei
O Capitão que diga: "Não cuidei."


Luís Vaz de Camões, in "Os Lusíadas", Canto VIII


Socorro-me de Camões para dizer-vos, cansado, vencido, que fui ao chinês e comprei - €7,90, balúrdio! um teclado novo, plástico achinesado. Minha esperança de m'acalmar de dores, tristezas, e enfim escrever o fim suspirado, desejado, querido, deste "pc das galinhas". Onde, s'escrevo, é num inarrável picoto de
uma
a
uma,
no engodo do triste consolo de pensar que é assim,
grão
a
grão,
que elas se enchem e eu o meu papo, meu lentium abecedário.

casmurro, mas acredito num futuro de A4's!

ying e yang


as principais manchetes de dois dos principais jornais diários, hoje:

(entre parênteses a sua circulação diária reportada ao último trimestre de 2010, os dados mais recentes divulgados no site da APCT - Associação Portuguesa para o Controle de Tiragem e Circulação)

- Correio da Manhã: 207 polícias declaram falência (125.000)
- Público: 292 médicos voltaram a trabalhar no SNS desde há ano e meio (35.000)

nós. assim.

e porque assim, também uma achega a porque somos assim, sentimo-nos assim, estamos assim, e olhamo-nos entre nós assim, negativamente.
a primazia ao mau, ou ao bom. ying e yang. positivo versus negativo. nós, assim.

---/---

ps: escolhi aqueles dois por ambos darem relevo "a números" de clara influência na leitura da sociedade, na mostra que nos dão dela. cusquei os restantes e deu isto:

- Jornal de Notícias: Tráfico às claras no Porto (87.000)
- Diário de Notíciais: Saúde na Madeira já está na falência (28.000)
o i não entra nesta história dominical pois não sai ao domingo. talvez vão à missa. tem uma circulação de 7.000.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

música &... livros







um casamento onde o divórcio só deverá acontecer por profunda esquisitice duma das partes: livros & música.

digo-o, que tenho feito um bom esforço por me 'curar'. conviver mais com a música. para ler, ler-de-ler, ainda prefiro o silêncio. sem distrações. ou num café, só o frou-frou da humanidade vagueando à minha volta, eu seu espectador mas ouvinte do meu livro.

"The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore"

The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore from Moonbot Studios on Vimeo.



15 minutos de encantar.

pois!... :-(



(sacada algures no Facebook)

a dívida externa: porque é que os italianos talvez se safem e nós não



Sofia Loren! o melhor par de mamas da história do cinema! só com os seus "direitos de imagem" os sacanas dos italianos pagavam a dívida externa, mais o raio que os parta a todos. porra, eles tiveram a Sofia Loren! a Sofia Loren! e nós? e nós que também nos choramos com a tal da dívida externa? a Beatriz Costa, é? humpf... há gajos que nascem com o rabo virado para a lua!



JFK, "macho alfa": a 'pequena história' (um devaneio com pretexto)

a "pequena história" é mais que couscuvilhice. ou mais que pedaços de eros à solta, como aqui:

- "A partir daqui a história pode contar-se em discurso directo, tal como o apresenta o “The New York Post” no artigo que dedica ao tema: “Percebi que ele se aproximava mais e mais. Podia sentir a sua respiração no meu pescoço. Pôs a mão no meu ombro. (...) Devagar, desapertou-me a parte de cima do vest...ido e tocou-me nos seios. Depois pôs-me a mão entre as pernas e começou a puxar-me a roupa interior. Eu acabei de desapertar o meu vestido e deixei-o cair pelos ombros”.
Às tantas, notando alguma hesitação, JFK perguntou: “Nunca fizeste isto antes?”. “Não”, respondeu ela. “Estás bem?”, questionou o Presidente. “Sim”, respondeu ela.
Depois de terminarem, JFK encarregou-se de fazer chegar Mimi a casa, que na viagem de regresso disse para si própria vezes sem conta: “Já não és virgem, já não és virgem”."

a "pequena história" é também isto:

- "Para além dos episódios de intimidade, Mimi lembra-se de alguns momentos definidores da presidência de JFK, incluindo a crise dos mísseis cubanos. Durante 13 dias, em Outubro de 1962, os EUA e a URSS estiveram num impasse nuclear. Apesar de os EUA terem ganho este braço-de-ferro, a ex-estagiária afirma que o Presidente estaria disposto a ceder. “Prefiro que os meus filhos sejam ‘vermelhos’ [comunistas] do que morram”, terá dito JFK a Mimi em determinada ocasião."

pequeno exemplo, extraído duma notícia de jornal que se centra mais nos pormenores escandalosos da relação dum presidente, quarentão e casado, com uma estagiária de 19 anos, com a ter convencido a fazer sexo oral com outro homem, o incitá-la a tomar drogas, ou até com as perfomances deste 'macho alfa' na cama, aos vistos também com algumas 'deficiências'.

mas pondo tanta parte digna de oh!'s escandalizados de lado, a pimenta que faz vender, em todos estes tipo de livros memorialistas há nacos de achegas a 'outra interpretação' dos grandes factos históricos vividos na primeira pessoa, pelo menos por um dos personagens. claramente não sei se será o caso deste, embora me esteja a servir do seu exemplo para ir mais longe no raciocínio e na explicação do gosto por literatura que, aparentemente, não vale mais que valerá a leitura do jornalismo de escandâlos: zero, ou no wc quando se obra e pragueja. a História, a maiúscula, de há muito que não despreza a sua irmã "pequena", a contada na primeira pessoa por aqueles que nunca surgiram no retrato embora fossem íntimos dos astros. talvez por isso.

este? lia-o, sim. mas não vou ler. em tempos de vacas austeras há que ter uma selecção cuidadosa com os recursos disponíveis, e, este numa das mãos, facilmente perderia para a outra, onde de repente me lembro duma boa dúzia de títulos que gostava de vê-los lá, e não os vejo.

isto foi só um devaneio, com pretexto.

lucro, literalmente fúnebre


uma péssima fotografia da face feia do capitalismo: apostar na morte (alheia, claro), ganhando mais quanto mais cedo ela acontecer.

nem o facto dos sujeitos da aposta terem uma idade entre os 70 e os 90 anos dilui a imoralidade deste "produto financeiro"

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

"vagina de morcego"



com'é???

suspensão ou redução de penhoras

à laia de 'serviço público', em prol das centenas de milhar de penhorados deste cada vez mais roto e triste país:

o nº 4 do artº 824º do Código de Processo Civil dá uma abébia a casos desesperados, àqueles que por força dum azar na vida ficam com ela irremediavelmente comprometida - ou eles ou seus dependentes. em suma, permite ao Juiz do processo suspender a penhora, perante requerimento fundame...ntado e com a argumentação devidamente suportada em provas, normalmente documentais, e ouvida a 'parte contrária' - o exequente, ou, nos casos em que ela incindiu no vencimento mensal, a reduza para uma fracção mais consentânea com as necessidades básicas do executado e do seu agregado familiar (por exemplo, de 1/3 do seu valor, fracção-tipo fixada em Lei, para outra fracção de menor dor e expressão).

claro que este expediente deve ser usado com parcimónia e perante situações concretas em que a penhora, como está a ser efectuada, "estrangula vidas". não como expediente moratório, de puro excuso ao cumprimento de obrigações, ou de salvaguarda da manutenção de despesas fixas que, perante a situação, são consideradas supérfluas, "luxos" a que um incumpridor então já apelidado de executado não pode agarrar-se. até que o digníssimo, se se apercebe de estar perante um caso destes, pode chatear-se e aplicar ao incidente processual uma multa. esta, aos valores actuais, é duns 190 euros, uma UC (Unidade de Conta). o resultado prático será que só se irrita quem tem mais que fazer que "aturar artistas", e agrava-se um problema que certamente já não é pequeno, a ter chegado onde chegou.

é uma dica. a utilizar com bom-senso por quem, infelizmente, está metido nestas camisas de onze varas.

porque o faço? primeiro parágrafo: há centenas de milhar de executados, mais do que alguma vez o nosso meio judicial conheceu. certamente neste gigantesco número há muitas situações aflitivas, desesperadas, em que por bloqueio mental causado pela situação, e por desconhecimento das alíneas legais, não agem para minorar a tragédia, às vezes evitando que em efeito de cascata outras se abatam sobre o próprio e a sua família. nem a Lei nem o juiz que a aplica são insensíveis a casos justos (provados...)

então não esqueça, quem precisar: a fórmula mágica para desabotoar um bocadinho um colarinho que subitamente estrangula pode ser esta: "nº 4 do artº 824º do Código de Processo Civil"

Saudação a Walt Whitman


Portugal Infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze...

Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,

Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,

Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,

Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,

Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...

Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,

Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,

E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,

Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.

Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,

Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,

Quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a Rua do Ouro,

E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,

De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,

Concubina fogosa do universo disperso,

Grande pederasta roçando-te contra a adversidade das coisas,

Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,

Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,

Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,

Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,

E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,

Grande democrata epidérmico, contágio a tudo em corpo e alma,

Carnaval de todas as ações, bacanal de todos os propósitos,

Irmão gêmeo de todos os arrancos,

Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas,

Homero do insaisissable de flutuante carnal,

Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,

Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura! incubo de todos os gestos

Espasmo pra dentro de todos os objetos-força,

Souteneur de todo o Universo,

Rameira de todos os sistemas solares...

Quantas vezes eu beijo o teu retrato!

Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)

Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)

E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá —,

Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito

Uma ereção abstrata e indireta no fundo da minha alma.

Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,

Mas perante o Universo a tua atitude era de mulher,

E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.

Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!

Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,

Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,

Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:

De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —

Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —

Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,

Poeta sensacionista,

Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,

Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir demais...

Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,

E cheira-me a suor, a óleos, a atividade humana e mecânica.

Nos teus ver sos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,

Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,

Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,

Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,

No teto natural da tua inspiração de tropel,

No centro do teto da tua intensidade inacessível.

Abram-me todas as portas!

Por força que hei de passar!

Minha senha? Walt Whitman!

Mas não dou senha nenhuma...

Passo sem explicações...

Se for preciso meto dentro as portas...

Sim — eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,

Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,

Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,

E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!

Tirem esse lixo da minha frente!

Metam-me em gavetas essas emoções!

Daqui pra fora, políticos, literatos,

Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,

Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.

O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

Que nenhum filho da... se me atravesse no caminho!

O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!

Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,

E comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...

Pra frente!

Meto esporas!

Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,

Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,

Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,

Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...

Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,

De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,

De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,

De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,

De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,

De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,

De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,

Dança comigo, Walt, lá do outro mundo, esta fúria,

Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,

Cai comigo sem forças no chão,

Esbarra comigo tonto nas paredes,

Parte-te e esfrangalha-te comigo

Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,

Raiva abstrata do corpo fazendo maelstroms na alma...

Arre! Vamos lá pra frente!

Se o próprio Deus impede, vamos lá pra frente Não faz diferença

Vamos lá pra frente sem ser para parte nenhuma

Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?

(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho.

Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço...)

Agora, sim, partamos, vá lá pra frente.

Numa grande marche aux flabeux-todas-as-cidades-da-Europa,

Numa grande marcha guerreira a indústria, o comércio e ócio,

Numa grande corrida, numa grande subida, numa grande descida

Estrondeando, pulando, e tudo pulando comigo,

Salto a saudar-te,

Berro a saudar-te,

Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos guinos!

Por isso é a ti que endereço

Meus versos saltos, meus versos pulos, meus versos espasmos

Os meus versos-ataques-histéricos,

Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro,

Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto,

E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

Abram-me todas as janelas!

Arranquem-me todas as portas!

Puxem a casa toda para cima de mim!

Quero viver em liberdade no ar,

Quero ter gestos fora do meu corpo,

Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,

Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,

Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,

Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

Não quero fechos nas portas!

Não quero fechaduras nos cofres!

Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,

Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,

Que me despejem dos caixotes,

Que me atirem aos mares,

Que me vão buscar a casa com fins obscenos,

Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,

Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!

Não quero intervalos no mundo!

Quero a contigüidade penetrada e material dos objetos!

Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas,

Não só dinamicamente, mas estaticamente também!

Quero voar e cair de muito alto!

Ser arremessado como uma granada!

Ir parar a... Ser levado até...

Abstrato auge no fim cie mim e de tudo!



Clímax a ferro e motores!

Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!

Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas sentidas!



Ponham-me grilhetas só para eu as partir!

Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem

Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!



Os marinheiros levaram-me preso,

As mãos apertaram-me no escuro,

Morri temporariamente de senti-lo,

Seguiu-se a minh'alma a lamber o chão do cárcere privado,

E a cega-rega das impossibilidades contornando o meu acinte.

Pula, salta, toma o freio nos dentes,

Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,

Paradeiro indeciso do meu destino a motores!

He calls Walt:

Porta pra tudo!

Ponte pra tudo!

Estrada pra tudo!

Tua alma omnívora,

Tua alma ave, peixe, fera, homem, mulher,

Tua alma os dois onde estão dois,

Tua alma o um que são dois quando dois são um,

Tua alma seta, raio, espaço,

Amplexo, nexo, sexo, Texas, Carolina, New York,

Brooklyn Ferry à tarde,

Brooklyn Ferry das idas e dos regressos,

Libertad! Democracy! Século vinte ao longe!

PUM! pum! pum! pum! pum!

PUM!

Tu, o que eras, tu o que vias, tu o que ouvias,

O sujeito e o objeto, o ativo e o passivo,

Aqui e ali, em toda a parte tu,

Círculo fechando todas as possibilidades de sentir,

Marco miliário de todas as coisas que podem ser,

Deus Termo de todos os objetos que se imaginem e és tu!

Tu Hora,

Tu Minuto,

Tu Segundo!

Tu intercalado, liberto, desfraldado, ido,

Intercalamento, libertação, ida, desfraldamento,

Tu intercalador, libertador, desfraldador, remetente,

Carimbo em todas as cartas,

Nome em todos os endereços,

Mercadoria entregue, devolvida, seguindo...

Comboio de sensações a alma-quilômetros à hora,

À hora, ao minuto, ao segundo, PUM!

Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro,

Grande Libertador, volto submisso a ti.

Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.

Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa

Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica —

Não ter tido a tua calma superior a ti-próprio,

A tua libertação constelada de Noite Infinita.

Não tive talvez missão alguma na terra.

Heia que eu vou chamar

Ao privilégio ruidoso e ensurdecedor de saudar-te

Todo o formilhamento humano do Universo,

Todos os modos de todas as emoções

Todos os feitios de todos os pensamentos,

Todas as rodas, todos os volantes, todos os êmbolos da alma.

Heia que eu grito

E num cortejo de Mim até ti estardalhaçam

Com uma algaravia metafisica e real,

Com um chinfrim de coisas passado por dentro sem nexo.

Ave, salve, viva, ó grande bastardo de Apolo,

Amante impotente e fogoso das nove musas e das graças,

Funicular do Olimpo até nós e de nós ao Olimpo.

.



Álvaro de Campos

domingo, 5 de fevereiro de 2012

sunday good news :-)


o nome mágico é Hélio-3.

as boas notícias acerca dele passam por ser um gás não radioactivo, de que se calcula existirem ao alcance do engenho humano 100 milhões de toneladas. e, calcula-se também, 100 delas satisfariam as necessidades energéticas do mundo (actual)... por um ano.

as notícias complicadas dizem-nos que essa reserva miraculosa encontra-se no nosso satélite, a Lua. ao alcance da engenharia espacial já disponível, mas de execução muito complicada.



finalmente, uma notícia que tanto pode ser animadora como o inverso: quer os USA e a Grã-Bretanha têm planos para em conjunto viabilizarem a exploração (e o transporte para o planeta), como a Rússia e a China têm um acordo igual. da competição entre os dois blocos resultarão naturalmente dois vencedores: globalmente, o mundo, todos nós. livres de pesadelos nucleares e com a despensa energética abastecida por 10.000 anos. e, obviamente, o bloco vencedor da corrida: será ele (eles?) a cara dos novos Senhores do Mundo.

nem todas as notícias são exclusivamente más. haja Ciência e Política à altura!





sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

my kind of auto punishment and guilt?



não quero ser patético, choramingas nostálgico ou saudosista, etc, mas alvoraçou-se-me o peito secreto ao ver nestas fotografias uma outra vida que podia ter tido e que perdi. por renúncia própria, acrescento: tinha nacionalidade, amor à terra, uma flat arrendada que era bem nice, carro e mota, e emprego que dava à justa para viver os vinte anos com tudo isso e mais tudo o que eles acham que merecem. o que nao tive foi... sim, foi falta de tomates. isso, nunca perdoarei a mim próprio.

a vida cá não me foi especialmente grata ou ingrata: normal, banal, e "gosto disto". nem é exclusivamente nos momentos maus que penso na outra, a tal de que reclamo a mim e de mim mesmo por tê-la perdido. é mais fundo, é uma mitologia que não deslarga e que se em 36 anos se mantém vida, a expectativa é que fique por cá até ao fim. my kind of town, also probably my kind of auto punishment and guilt.

desconforto


as privatizações são um sucesso financeiro. mas sabem o que me chateia? esta premonição de se o Dalai Lama cá vier daqui a, digamos, seis, doze meses, a puta da luz irá faltar e não será por razões técnicas mas por outras, imorais nesta parte do globo segundo bem nos ensinaram.

esta, nem de algibeira confortada consigo engoli-la

o meu respeito por por quem mostra tomates para dizer Não!, assumindo-o, a esta idiotice pegada. ainda há esperança, pesem os mansos que tudo comem em nome de leis espúrias, modernismos pseudo avant-garde, e uma mansidão 'politicamente correcta' que invocaria vómitos se não apelasse à pena por tanta miséria intelectual e irresponsabilidade perante um pilar do património cultural. não se pensa, seguem-se as modas, os dictames de politburos encobertos, o rebanho...
além da violência cultural, assassina, existe uma violação do Direito: Angola e Moçambique ainda não ratificaram o malfadado AO (ainda bem! parabéns!) pelo que a entrada em vigor na ordem jurídica interna desta convenção internacional (pacífico, não?) é ilegal enquanto ela, a própria, não entrar em vigor na ordem jurídica internacional. isto, indo pelo formalismo, já que por aí tanto se arenga "agora é Lei!". mais: pela letra do AO este só é de aplicação "obrigatória" após 2015. então?...
ainda há esperança que a burrice ceda e seja expurgada, banida, enterrada para ser lembrada como um momento mau. pergunto-me se um inglês, um australiano ou um norte-americano não se identificam por nacionalidades só de se ouvirem ou lerem, sem que isso lhes faça comichão ou, qualquer deles, corra a "uniformizar" a língua inglesa com receios dela falecer de... diversividade. idem, para um mexicano, um espanhol ou um argentino. a língua hispânica está viva e convive pacificamente e plena de vigor rejuvenescedor aceitando as suas diversividades regionais, afinal o húmus que a revigora e permite não se sentir ameaçada por qualquer fantasma de esquecimento. aplicável a qualquer outra!
é difícil entender isto? entender não é. aceitar é que o será se presidirem nacionalismos mal-resolvidos, complexos coloniais ou imperiais. ou - que existem - uma cegueira abjecta à brutal manipulação da opinião pública por interesses comerciais (sim: pode ler-se interesses editoriais). ou acordos políticos cinzentos, tipo dou-te isto e não te esqueças: a incompreensível pressa do governo Sócrates em querer tornar o AO irreversível só assim se pode entender.
porra, não podia começar o dia com melhor notícia e, simultâneamente, ficar tão mal disposto ao rememoriar toda esta parvoíce!