domingo, 12 de fevereiro de 2012

"Pelindaba"


no Expresso de ontem uma crónica de Mário Crespo onde, além das ilacções à nossa história contemporânea, visita pormenores pouco badalados da tormentosa história da África austral, pré-fim do apartheid.

como na e-edição o texto só está disponível para assinantes, vou dar-me à trabalheira.

"A conversa acabou"

Em 1984 fiz a reportagem da assinatura do Acordo de Nkomati. Um entendimento entre Samora Machel e Pieter Botha durante o regime do apartheid tinha sido considerado impossível. Em plena Presidência de Ronald Reagan, o secretário de Estado Adjunto para Assuntos Africanos, Chester Crocker, um académico de Georgetown, muito contracorrente, defendia o diálogo. Nos anos 80 a África austral era um pesadelo. Pretoria geria uma guerra aberta em todas as fronteiras e estava isolada do mundo por uma intransigente política de boicotes diplomáticos, económicos e culturais. O resultado prático de décadas de ostracismo foi o desenvolvimento local de uma indústria de armamento que culminou na construção, confirmada, de vários engenhos nucleares num complexo a uns 100 quilómetros de Pretoria. O local onde esta pesquisa foi conduzida chama-se Pelindaba. É uma palavra zulu. Quer dizer: a conversa acabou. E tinha acabado. Em 1977 o regime de Pretoria deflagrou dois engenhos nucleares em Vastrap no deserto de Kalahari. As explosões foram detectadas por satélites americanos e russos. Era um dado adquirido que Pretoria, mais ano menos ano, levaria o seu poder de destruição nuclear a Luanda e a Maputo. Foi à porta desse perigosíssimo pária nuclear que o enviado dum Presidente republicano foi bater propondo conversações de paz. Chamou ao processo Política de Envolvimento Constructivo (Constructive Engagement). Durante dois anos consecutivos falou com todos. Cubanos, russos, angolanos, moçambicanos e sul-africanos. Todos foram cedendo terreno e conquistando o respeito mútuo que se tinha perdido nas batalhas no Cuando-Cubango, na Gorongoza e nos corredores da ONU. O Acordo de Nkomati foi o primeiro sinal concreto de que o Envolvimento Constructivo de Crocker era a única via para quem queria a paz. No relato que fiz da assinatura do acordo na fronteira entre Moçambique e a África do Sul, registei uma conversa acidental entre Pieter Botha e Samora Machel. Falaram da terra daquela zona, que era vermelha, seguramente muito boa, disseram, para milho e para gado. Já não eram nem o bóer que tinha sido apanhado pela história num labirinto de segregações raciais inventadas pelo medo, nem o temível guerrilheiro cheio de cicratizes no espírito e no corpo deixadas pela escravatura colonial. Eram dois homens de uma terra que em paz dá milho e alimenta o gado que sempre foi o grande símbolo de riqueza em África. Depois desta conversa Nelson Mandela foi libertado, o apartheid acabou e a África do Sul desnuclearizou-se antes das eleições democráticas. Interrogo-me se não estamos a cometer mais um terrível erro histórico buscando, com assinalável despudor, os parceiros para negócios episódicos, exclusivamente, numa elite apanhada num labirinto da história de onde só vai conseguir sair quando se emancipar do vexame deste neocolonialismo financeiro. Para isso é preciso falar com eles. Todos. E não só com as aristocracias militares que as guerras coloniais impuseram a uma terra de gente admirável a todos os títulos.

1 comentário:

Anónimo disse...

excelente post. obrigado