quarta-feira, 28 de maio de 2014

em quase tempo de Feira do Livro: "A Casa de Papel", Carlos María Dominguéz


«Eu não risco os livros. faço as anotações à parte e introduzo-as nas páginas enquanto trabalho. Depois retiro-as e atiro-as para o cesto dos papéis.
- Porque não as conserva? - perguntei admirado.
«Repare. Não é qualquer um que escreve. Quer dizer: não o deveria fazer. (...)»
(...)
«Confesso-lhe que algumas reflexões me tentaram, mas um leitor é um viajante através de uma paisagem que se foi fazendo. E é infinita. A árvore foi escrita, e a pedra, e o vento na ramaria, a saudade dessas ramagens e o amor ao qual emprestou essa sombra. E não encontro melhor sina que percorrer, em poucas horas diárias, um tempo humano que, de outro modo, me seria alheio. Não chega uma vida para percorrê-lo. Roubo a Borges metade de uma frase: uma biblioteca é uma porta no tempo.»

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«Foi o primeiro sinal de que alguma coisa não estava bem. Certa tarde, aqui mesmo, onde o senhor está sentado, explicou-me o trabalho que tinha para não juntar numa estante dois autores que se tivessem zangado. Não se atrevia a colocar um livro de Borges ao lado de um de García Lorca, por exemplo, a quem o argentino qualificou de «andaluz profissional». Nem tão-pouco uma obra de Shakespeare junto de outra de Marlow, dado as insidiosas acusações de plágio entre os autores, se bem que isso o obrigasse a não respeitar os números seriados de cada volume da sua colecção. E tão-pouco, naturalmente, um livro de Martin Amis e outro de Julian Barnes, depois que os dois amigos se enfrentaram, ou colocar Vargas Llosa junto de García Márquez.»



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«Um amigo encontrou-o a cear de frente para uma magnífica edição do 'Quixote', pousada num atril, atrás de um copo de vinho branco. Entenda bem, não o que ele segurava na mão, mas aquele que, curiosamente, fora servido ao próprio livro.»

in "A Casa de Papel", Carlos María Dominguéz, ASA. 2 €, no Continente

domingo, 25 de maio de 2014

ah, quem me dera ser cavalo... fincava-me bem firme e alçava a garupa bem alto, emergindo, emergindo da lama dos tempos, as patas traseiras flectidas, e depois soltava-as em impulso, qual mola distendida, os cascos faiscantes atingindo-os nos queixos... ah, quem me dera ser cavalo, e que belo coice os filhos da puta levariam...
depois vi que não tinha patas mas sim mãos, levantei-me e fui votar

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Kiribati, sempre!

apropriei-me de Kiribati na altura em que instintivamente percebi que a ilha que procurava não existia à vista, mas não me conformava em ficar solitário num qualquer atafulhado cais da vida. difusamente criei-a, sem contornos mas luxuriante de qualidades, sabia que nas névoas da minha necessidade ela existia e quando dei com Kiribati (por aqui, por esta Net tão excessiva como capaz) a sonoridade fantástica do seu nome, a solidão dum recanto tão longe, tão longe, e a imagem perfeita, perfeitinha até na ponte não-caias, fizeram o resto: mudei-me para Kiribati. houve uma altura em que até aqui, e no facebook, indiquei-a como local de residência. carreguei para lá tudo. livros, musas. incluí-a em poemas. sorria quando me gozavam com os meus apelos por Uma ilha!, Uma ilha! pois eu tinha Kiribati. era o meu refúgio prometido, e lá, lá, tudo o que é perfeito demais para acontecer nas bordas dos nossos cais - mas existe, ó se existe... - ia-se acumulando. terá havido alturas em que os meus cargueiros partiam camuflados nos tons cinzentos da chuva em que vivia, mas algures, conforme se aproximavam de Kiribati, da minha Kiribati, ganhavam flores e encantos, cores e cores, e quando aportavam eram praias e praias cheias dos meus sonhos, tudo espantosamente belo e perfeito porque tão rejuvenescidos quanto eu: lá adolesço sem receios de críticas. Kiribati, sempre! nem o seu triste destino me afugenta a paixão, pois se tiver de se afundar nas águas sou-lhe dedicado quanto baste para acompanhá-la, na condição do último dos últimos barcos de resgate levar os meus livros.
quando há coisa dum ano atrás li que Henrique Monteiro tivera o desplante de escrever um romance com trama e sei lá mais o quê situados na minha ilha a primeira reacção foi uma gargalhada, «ah ah, tarde chegaste!», e em pose de amuo e nariz empinado desviei sempre atenções e trocos para outras leituras. um gajo com direitos não deve dar importância a arrivistas. mas com o tempo foi-se instalando um incómodo. mesmo quando ainda cá nunca fui mau vizinho para ninguém. e lá? não pode ser. se um tipo qualquer descobriu o caminho marítimo para o meu segredo e refúgio não é correcto continuar a fazer que não se passa nada, que ele não existe, não mora lá, e continuar a passear em pelota pelas minhas praias fazendo vista grossa a qualquer novo vizinho, mesmo se abusadoramente lá instalado.
então o livro entrou cá em casa. já há uns meses, é verdade, mas mesmo que o tenha até hoje ignorado sabia bem em que estante e em que prateleira estava, e hoje vou tirar o espinho do pé. aquelas imagens-minhas estão repletas de experiências de vida, chamem-lhes sonhos e desminto-o porque, afinal de contas, Kiribati existe e ainda não foi águas abaixo, e tenho curiosidade em ver o certamente pouco que ele (de mim) viu. acabei à bocado o espantoso relato de amor incompreendido de Elizabeth Smart - outro que vai para a ilha -, e é altura de fazer uma visita cheia de boa-fé ao vizinho. cordial. vou de peito aberto, disposto a aceitar tudo o que ele me conte. depois logo se vê. ou tenho parceiro para desfiar memórias e razões de degredo idílico, ou faço humpf e empino o queixo e ficamos por uns olá, bons dias distantes. até ele se fartar e escrever outro. bem distante, espero. é que eu cheguei primeiro!