sábado, 2 de maio de 2009

A primeira vez

A minha primeira vez foi como são as primeiras vezes de tudo. Umas por acaso, outras planeadas e hesitadas no recomeço lento que antecede o primeiro passo quando ele será novo e sabe-se especial, o tactear aléns só sabidos em conjecturas sobre o seu açúcar ou o sempre possível amargo.

O primeiro café e a primeira cerveja foram desanimadoramente amargos mas hoje há luxúria quando a sua espuma me alaga os lábios. Já a primeira vez que o meu pedalar se aguentou sozinho levou-me do medo ao sorriso de quem triunfa sobre o trágigo futuro da inutilidade e ascende à divina sensação de que as asas existem e ele, futuro, será tão célere como aquela primeira e brilhante volta ao prédio, pedalando.

Sobrevoam estas linhas o primeiro beijo e a primeira experiência sexual, sei. Do primeiro lembro dois e é por essa fartura que daquela nada lembro além do provável local e custo. D'ambas, ambas o primeiro, fui beijado antes de beijar, assim como uma mão segurou-me o selim e gritou-me «pedala! pedala!» até perceber que se soltara e eu voava, até o corpo absorver aquele sabor novo de língua e quais asas a caminho de nuvens oferecer o sabor da minha, energicamente pedalando rumo às novas alegrias de aprender mais mundo sem uma mão a amparar.

Da outra primeira vez bem vasculho mas não encontro registos além de que aconteceu cedo demais, e em forma, sentido e vivido sem dúvida adulta demais. Sem paixão, sem amor, e por isso a esqueci e não consigo nem desejo encontrá-la, que depois que saltei da bicicleta para a motorizada é que aprendi o que é cair a sério, e todas as iniciações devem cumprir essas etapas rituais.



Os meus primeiros desenhos foram todos de carrinhos, que depois recortava e com eles corria as divisões da casa, feita longa pista de corridas de imaginar. Ainda antes da primeira cara que traçei recordo uma primeira inspiração filha das então minhas grandes realidades e onde sonhava que aprendia a voar - em local próprio: aquela varanda no primeiro andar da aerogare de Lourenço Marques era minha tardes inteiras sempre que podia e, lá, gravou-se dalguma forma a imagem imaginária que desenhei numa aula em que o tema tinha o nome lindo de "livre": círculos concêntricos com alvo no peito de alguém-ninguém, ao caso um homem que corre na pista de braços estendidos para abraçar e ser abraçado.

Os contornos estavam todos lá, ao de leve desenhados a lápis de cor uniforme, mas o que gritava ao olhar eram os círculos que desenhei a compasso, fortes e em tinta-da-china após uma aguarela cor de sol ameno cobrir por igual toda a folha, o avião e seus pormenores, o vulto sem face, mas de gabardine esvoaçando nesse dos primeiros gritar que primeiro aconteça sempre o beijo, o sabor da espuma nos lábios e os círculos centrando ao peito, e só depois pedalar.

Alguns anos mais tarde materializei um rosto e amei-o antes dele, ela, me beijar. O vulto do aeroporto ganhou rosto no desenho da minha imaginação. O homem que queria ser e antecipei à altura do no desenho, tela talvez na mesma idade em que precedi no primeiro dos dois primeiros beijos, corpo, queda e escoriação. Pois não é assim que se aprende a pedalar para sentirmos a glória da primeira volta ao prédio ou a embriaguez do sumo das nuvens que vem naquele salivar.

Fiz uma redacção de que me orgulhei pois a professora leu-a em voz alta à turma. Nela, cujo tema seria "Amizade" ou para aí puxei, falava sobre o meu vizinho e grande amigo Gilberto, o Bétinho, mais velho aqueles tantos anos que criam os heróis. Jogar na equipa dele era vitória certa pois era grande e hábil, um craque. Um serão sentado no muro a conversar com ele era mais que uma conversa, uma universidade acerca da vida dos grandes pois ele sabia de tudo e desses tudos muitos já os experimentara, inclusivé deixavam-no entrar em filmes onde eu nem me atrevia a tentar enganar o porteiro e ele contava-os, incluindo das miúdas giras que se viam nos intervalos e dos beijos que pairavam no escurinho, esseoutro filme no filme que se sabia existir mas só pela voz do Bétinho se conhecia em pormenor. E salvou-me algumas vezes de levar porrada, em triplicado meu herói. Foi uma redacção bonita e sem saber ou importar-me se, chamo-lhe de primeira vez.

E vou ficar por aqui nesta primeira vez de primeiras vezes. Pedalo sozinho mas nunca me esqueço de como o compasso centrou os círculos resituando no centro da memória o fundamental, a aguarela-sol apagando o mercurocromo nos braços que se estendiam para abraçar e, daqueles dois primeiros beijos, qual me ensinou como é lindo voar.


(a primeira imagem é daqui, a segunda vem do Voando em Moçambique da minha amiga Luísa Hingá, e a última foi gamada aqui.)

2 comentários:

Luisa Hingá disse...

Só te fica bem o gamanço. Na minha casa gostamos muito de ti e familia.
Beijinhos
Luísa

th disse...

...a primeira vez...pô-lo em pé...só malandrices, como convém a um autentico mangusso...beijo, th