texto integral da comunicação que fiz ontem no "IV Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora" , realizado no auditório da junta de freguesia de S.Domingos de Rana, em Carcavelos.
"Palavras cruzadas, emoções baralhadas"
Olá, boa tarde. Sou o Carlos Gil e vou falar-vos de amor. Amor a uma cidade.
É comum explicar o amor a África por aqueles que lá viveram, afirmando que quem foi por ela beijado nunca esquece esse carinho.
Eu não fui beijado, foi mais profundo. Fui seduzido, e desse amar violento a uma cidade guarda a memória carícias de que não me evado nem emigro, é tão envolvente como o é uma paixão.
E que se vive no remanso do silêncio, até um dia em que a caneta se torna insuportavelmente lenta para contar. Em que se pára, o olhar preso na tristeza de tão pouco teclado para tanto que há para exprimir e compreender…
A minha cidade… Pérola do Índico, minha princesa … … Namorei-a, amei-a à exaustão, e emocionalmente ainda me sinto exaurido pela separação.
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Divorciamo-nos há trinta e tal anos atrás. Um amor adolescente, um namoro em que as mãos dadas e as carícias trocadas fizeram-me suspirar por mais, acasalamento e de papel passado uma tarde rabiscado numa avenida que desce a colina e beija-a no ventre, Baixa da cidade, onde o Homem ergueu orgulhosos trinta e tal andares, para dizer à linha da paisagem, em grito de posse para a amante fiel e tolerante que tudo lhe dá e permite, que a sua ambição é grande, alta, excessivamente alta.
Antes do divórcio que desalinhou o nosso entrelaçado de afagos, eu e ela, musa cidade, namoramos sem fim nem jeito nas esquinas que me eram familiarmente sensuais, esquecidas as convenções nas partilhas de amor que trocámos ao seu sol, nesse sopro quente que clamava por quinhões de emoções que não lhe regateámos.
Era um amor doce, beijos sem fim trocados na suavidade da brisa que subia da baía e amenizava fins de tarde tropicais, outras vezes impetuosos no travo de sal das portas do mar onde nos sentávamos, juntos, próximos, amantes, jurando cumplicidades e sorrindo ao viver.
Sim, estávamos apaixonados e o nosso namoro era tão lindo como o amor que líamos nos nossos olhos quando nos encarávamos e sorríamos, enlevados na nossa paixão.
E, cá de longe, do tempo das cãs e das memórias, deixo soar o meu enamoramento eterno e escrevo-lhe cartas de amor e de desejo sem fim.
Mas igualmente me interrogo:
Perdoar-me-á algum dia?
As esquinas recordar-me-ão?
Faremos amor novamente, pois o que tínhamos era tão belo e intenso que não podia ser senão uma posse amorosa, contínua?
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Hoje, os tais trinta e tal anos depois, mais coisa menos arrufo, ainda não gosto de falar no divórcio. Prefiro afagar em mim o enlevo das carícias da memória, as mãos dadas, os suspiros e as juras que trocávamos.
Compreendes-me, querida?
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Como dizem os antigos e que muito conhecem destas coisas dos amores perdidos, não há verdades únicas nas separações, e é difícil arrolar razões e encontrar culpas exclusivas quando os dedos se separam, e deixa de se sentir o conforto da sua carícia. Quando o romance termina e desocupam-se os dias de calores como aqueles em que o nosso namoro foi farto, quando sobrevém às noites quentes o frio da solidão.
Não, nem palavras de traição são alçáveis, excessivas na injustiça de tanta letra dura para contar das lágrimas, o tempo que passa, a separação. Aconteceu, os deuses entenderam que o nosso romance precisava de mais provas, outro fogo que não o que nos aquecia na ânsia dos jovens amantes, e ele soçobrou; o nosso casamento, pueril, reprovou-se a tal prova e chumbou o enlace que se jurara eterno.
Conheci outras cidades e outros leitos, mais amores, e valha a verdade em contar que, neles, também fui feliz. Noutros colos e noutras ruas também amei e o meu sorriso surgiu natural ao acariciar seios-colinas, nas águas doutras praias e na sombra doutras árvores, na crosta urbana doutras terras, também ternas na sua secular carícia, sapiente, amei e fui feliz.
Mas há estes momentos de melancolia em que olho o passado e recordo o primeiro amor, e cai-me uma lágrima de saudade.
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Hoje, vida feita e semi-gasta, com tanto balanço encerrado e de contas ajustadas, há em mim uma janelinha que não se cerra: abro o peito e espreito, e vejo-te a ti minha primeira amada. Vejo-te, minha cidade.
Se me olho ao espelho e tento ler as rugas, decifrar as cãs, desisto de nelas contar as desilusões, e deixo o olhar perder-se no brilho dos olhos quando a memória em ternura te contempla, as avenidas, o caniço, as acácias tão rubras como quente era o nosso enlevo.
Fazes-me falta
neste Outono da vida, meu amor. Sinto a falta do teu bafo quente, o brilho do teu sorriso, da magia que era acordar de mãos em ti enlaçadas e acreditando na eternidade da nossa paixão.
Desculpa-me pelo que errei, pelas minhas culpas na nossa separação. Desculpa-me. Porque ainda te amo. Pelo tempo passam outras que me amam e me tratam bem, mas confesso-te em letra de lei que, em mim, ainda não aconteceu amor como o nosso primeiro. Desculpa-me meu amor, Princesa, minha cidade.
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Termino com um poema porque ninguém é mais universal que um poeta. Nuno Júdice:
Mas eu sabia tudo isso. Um poema faz-se para
dizer o que não se soube evitar, para substituir
confissões e decepções, para transformar em algo
de belo o que poderia conduzir à depressão,
ao fim de um mundo. Na verdade, há
ou não espaço para esta inquietação, para
a censura, a suspeita de que algo poderia ser
de outro modo, como se cada um de nós pudesse
ter o seu próprio caminho? Falo contigo: e
tu ouves-me, não me ouvindo, como eu te ouço
sem saber se é o que eu quero ouvir que vem
das tuas frases, ou se dizes o contrário do que
sentes para que eu sinta a verdade do que nenhum
de nós sente - a indiferença, a brancura da
emoção, um desejo de ruptura... Como se o amor
acabasse no meio do que não começou; ou
a distância pudesse apagar o que não tem fim.
1 comentário:
amo-te, meu amor, minha cidade
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