não tenho a certeza de qual, mas foi com um destes três livros que dei o salto da banda desenhada para os "grandes, sem bonecos". suponho que foi o Conde de Monte Cristo mas acho que a preferência vem de, destes, ter sido o mais grosso e da satisfação que me deu ter conseguido ler um calhamaço daquele tamanho. quanto às capas, mal me lembro delas e das três imagens que escolhi só a do "Conde" me dá ideia de ser parecida, se não a mesma edição. depois houve o Ivanhoe, o Davy Crocket, o Vinte Anos Depois, o Moby Dick, os livros biográficos em versão juvenial, de que recordo o do dr. Albert Schweitzer e a saga de sir Edmond Hillary à conquista do Everest, tanto que ambos me fascinaram, mais os inevitáveis sobre a Segunda Guerra Mundial, espionagem, e os ets que são fabulosos a qualquer miúdo sedento de mais e mais. a leitura é um vício bom - embora... no fim digo.
o meu pai era um feroz leitor de livros policiais, aqueles de bolso da colecção Vampiro. em casa havia sempre dezenas, e quando se apercebeu de que eu me iniciara neles seleccionava os que eu podia ler. claro que procurava era logo ler os outros, aqueles que, tendo-os ele já lido, eram discretamente dissimulados nas pilhas no seu quarto. e, escondido na casa-de-banho, saltava páginas pouco preocupado com enredos mas à procura do beijo escandaloso, de descrições ardentes, extasiado com novos rubores que descobria em mim. também fascinado com descrições pormenorizadíssimas de crimes lavados em sangue e tripas fora, como nunca me apareciam nos 'meus', os autorizados. foi outro início, Agatha Christie veio depois.
isto no tempo dos alfarrabistas, em que se trocavam usados num intercâmbio que bem gerido permitia existir sempre literatura nova para ler. ao habitual 'leva dois, trás um', que despachava monos e trazia promessas de pepitas, juntavam-se os que ia comprando, ele, mais os que depois comecei eu a comprar, principalmente com os formidáveis saldos feitos à porta do cinema Império, na av. de Angola (LM, Moçambique), que mal soava a campainha e as cortinas eram corridas os putos, aqueles a quem ainda faltavam algumas zucas* e muitas quinhentas* para comprar o bilhete mágico para a matiné de caubóiadas, saldavam a existência ao preço da, diríamos hoje da uva mijona, mas à época e local seria mais correcto dizer que ao preço da tsintshiva.
então, eu, que me calculo nos meus dez, doze anos, lia como todos os miúdos os da série 'Os Cinco' ('Os Sete' vieram depois, e nunca agradaram tanto), e o meu pai trazia consigo a lista dos "em falta", pormenor que nunca esqueço. precisamos destas memórias, os pequenos gestos de amor, essas formas discretas que se têm para transmitir sem palavras afagos. tive-os! e um deles era a listinha no seu bolso, que de vez em quando me presenteava com uma nova aventura dos 'Cinco', húmus adequadíssimo às imaginações naquela idade.
a minha irmã, a Milly, também estava contagiada por este vírus da leitura. mais ainda, que já então escrevia: é poeta precoce, e das verdadeiras. sendo menina tinha as suas leituras próprias, mas foram livros que também não me escaparam. li com (muito) agrado o 'Mulherzinhas' e mais alguns do género, incluindo a sequela deste de que agora não recordo o nome. lia-se de tudo. as Selecções do Reader's Digest, principalmente os artigos que falavam de carros e a secção de livros condensados, dicas que nunca esqueci e muitos dos comprados já na adolescência obedeceram não a um impulso mas à memória do resumo que lá lera.
acho que nunca mais parei. sôfrego. excessivo? talvez. talvez mesmo! não sei quantos leio ao mês mas são muitos e de diverso género. sou um leitor ecléctico, e tanto pego num thriller da moda como num ensaio sobre literatura, e acreditem-me se vos disser que na minha "livralhada" tenho manuais de jardinagem e de construção de abrigos nucleares domésticos. e folheio-os a todos, pelo menos a isso nenhum escapa dando-me a noção, vaga mas existente, do que tenho e onde o tenho. tanta vez me sento à secretária só a olhar-lhes as lombadas, em estado de hipnose aparente em que nada se agita excepto a história que cada uma me vai contando.
e hoje lembrei-me de falar nisto.
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uns chamam-lhe revisitar jardins. outros (eu), digo que são só memórias. interrogando-me continuamente se não teria sido preferível ter passado mais tempo a jogar futebol no passeio e a namoriscar as miúdas, sentado no muro do prédio. há argumentos pró e contra, mas não me livro da sensação de que tenho um 'peso livresco' excessivo, por prematuro, e se dei o primeiro beijo aos 18's (olá Carla! onde andarás?) o excesso dos que lera e suspirara escondido na casa de banho é que o atrasou. e isso, isto tudo, ainda permanece. ficaram golos por marcar, ficaram sim. este goal average negativo hoje pesa-me, e há momentos em que sinto tanto peso como parte do desagradável que é sentir-me um tótó romântico, uma volta ao mundo depois convencido que o melhor de tudo é a poesia.
*em calão laurentino, zuca era uma moeda de 2$50, e a quinhenta uma de 50 centavos
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