quarta-feira, 27 de março de 2013

Nemésis


o pequeno parto do fim do €uro já se iniciou. na maternidade cipriota.


«Não é o fim nem o princípio do mundo, calma é apenas um pouco tarde»

Manuel António Pina
 
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.

Sebastião Alba
(foto fanada no facebook)

segunda-feira, 25 de março de 2013



 
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


Vinícius de Moraes

quanto mais prima... hum... não parece!

 
talvez a menina ganhe vergonha e comece a cumprir o que se espera dela... acorda, prima Vera! enxerga-te, ó... humpf...

Guy Debord


memórias... quem não se lembra do "A sociedade do espectáculo", um dos que se leu e releu e ainda hoje se conserva e olha-se com o carinho que merecem os carimbos que nos formaram? da pedrada no 'status pensante' que foi a Internacional Situacionista? quem não se lembra de ter sido maravilhosamente jovem e optimista, contestatário por fés, robusto idealista?

Bolaño

 
desde este mês há um "novo Bolaño" a luzir-nos o olhinho nas livrarias. "Amuleto", chancela da Quetzal. ao que li na nota de leitura que o Expresso deste fds lhe trazia, este trás a 'explicação' do título do [gigante; monumental até em volume] "2666", o romance que entre nós fez explodir o conhecimento deste escritor. a ver vamos. isto está duro para aquisições.

a doente Europa

 
sempre achei estas visões pessimistas. porque acredito (acreditava?) num ideal europeu tal como o pensaram Jean Monnet, Robert Schumann, Adenauer e mais uns tantos. no tempo dos estadistas, essa espécie desaparecida e que tanta falta hoje se sente. mas, actualmente, já não sei... já não sei, e este 'não saber' é a parte pior. a desesperança. o medo gélido do amanhã. e a raiva «como foi possível? bestas!...» contra todos os que, podendo, tendo poder, cátedra e capacidades intelectuais para prever, travar, sarar, nada fazem. nada fazem de profícuo, entretêm-se em mézinhas de feiticeiro tribal, olhando primeiro para a clareira da sua aldeia e ignorando (desprezando?) todas as demais que existem além das árvores. malditos sejam!

o que é e o que faz o escritor? e de que é feito?

à pergunta dum amigo, bom de prosa e melhor poeta, também conversa com ele mesmo - «afinal o que é e o que faz um Escritor? E, principalmente, do que é feito um Escritor?», respondi-lhe:

 

«...a capacidade de expressar por escrito e de forma legível, com elegância no trato da palavra, pensamentos, reflexões, que não sejam a vacuidade da banalidade? tudo isso, que nos interrogue? que nos force a reflectir? seja em crónica, ficção ou poesia. sem medo das ideias, dos sonhos ou dos pesadelos. sem medo das palavras. sem medo. um escritor é "cojones". não se esconder no bruá das maiorias ou das bandeiras. na merda mais abjecta de todas que é o "políticamente correcto". ter coragem. "cojones". e saber dizê-lo, saber dizê-lo... sem isso é apenas um megafone. para isso já temos este novato, este novo Rossio, o facebook. sem vaidades írritas e obtusas. disso, que tanto há, nasce a urticária à leitura. acontecendo, está o "escritor" morto e pode dedicar-se à pesca. ou ao coro ululante das multidões. é ser apaixonado e isento, simultâneamente. não é tarefa fácil. olhar o mundo que o rodeia além do alcance do seu umbigo. olhar o passado além das crostas das feridas próprias. e tudo, tudo muito bem escrito. respeitando a sua língua e a inteligência dos leitores. escorreito. profundo, seja, mas legível. com berloques, seja, mas sem exageros. o simples sempre foi o mais belo. enfim. ou é ou não é. tristeza, tanto engano...»

domingo, 24 de março de 2013

a ilha. anti-poesia.

os poetas mentem todos. sumptuosos de palavras belas, chamam ventura à indolência dos ciclos, instantes viajantes a que, intuem-no mas não o dizem, falta a imortalidade do simples. e, o esgar, o trejeito da consciência inquietada, desfigura-se em sorriso redigido e a vida, crêem, continua. malsã, coxa da rima que a desdiga. suicidam-se ao recusarem a narrativa íntegra em prol da palavra curta, ao negarem a fotografia e o espelho sem a luminosidade colorida do poema. falham ao almejar tão longe e tão perfeito como a coisa além das coisas, a dicção escrita perfeita. colecções de enganos acumulados, páginas amarrotadas do conto duma ilha que não existe e, se existe, não há poema que aclare, decifre, indique com zero dúvidas porque é perto e longe, irresistivelmente atraente mas inacessível. tornaram-se biógrafos-contabilistas dessa amargura tão francamente revelada que, embora crédula numa posteridade lida, crêem-na ainda assim dissimulada. e convocam-na em crisma de canto poético, monólogos dessa tristeza. como se a desordem caligrafasse a demência de dedos de delírios e de tormentos, tornando-a solvível. literariamente? turba narcísica, arrebatada com as lombadas fininhas em ouro puro, assim lêem as suas emissões. fantasias de afrodites privadas, vocábulos acorrentados, derramados em cascata de íntimos mas sem óvulo atingível, quimera da ilha que existir existe, mas não é possível abraçá-la, tomá-la, exilar o fracasso de nós… os poetas mentem, mentem, mentem. enganam-nos se nos maravilham. não há ilhas refúgios de beldade na vida-viúva e pura de realidade. não é poesia, é auto-medicação, e sem benefício dedutível no acordar para o ciclo seguinte.

e eu, quanto mais garatujo mais sou uma criatura amarga. às vezes finto-me e digo que sou só triste e o mau-feitio é a causa da existência e do tumulto, o sabor de fel da anti-poesia. engano-me, e não há ponto final neste crer num exílio sem recurso à palavra escrita, a tal ilha

segunda-feira, 18 de março de 2013

sitemeter de estios

eu não sei se vêm a esta praia muitas vezes. eu venho. diariamente, às vezes num espreita, noutras num relê de grãos, e algumas - acho-as as melhores - num estacionamento do olhar, um colo de página, um mural que não é memorial porque é uma foto viva.
se há falecimentos a registar um não conta, não existe, não é dum rol triste. aqui estaciono e voo. aqui não morro, não morri, aqui dão-me raivas contra muita coisa e contra mim próprio, mas aqui não morri. leram das maravilhosas nuvens do estrangeiro de Baudelaire? aqui: o céu. o céu que não existe mas devia existir, perfeito e imperfeito, mas quando nos agasalhamos olhando-o e dizendo que está cinzento é na mesma um céu. assim, sem vírgulas: o céu. ou com as que lhe pertencem.
e nenhuma gaiola dourada o tem: tem dourados, tem culpa, responsabilidades, obrigações, medo e cobardia, algemas de cetim. vê-se melhor numa cela que numa gaiola dourada: o ouro da sobrevivência ofusca. lá, na cela espartana e castigadora, no silêncio apertado da expiação, nem é precisa uma exígua janela para um céu estar sempre presente, dia e noite, dia a dia. há quem o veja, sinta e até palpe, mesmo que com os olhos abertos. (embora a culpa dos momentos o enevoe).
uma praia. um paraíso. um futuro que não existe mas temos um direito sagrado de sonhá-lo. eu venho aqui diariamente, mesmo após lavar a cara e ler nos jornais que chove, e é só uma fotografia.

sábado, 16 de março de 2013

o que são as nuvens?

"O estrangeiro"

- A quem mais amas tu, homem enigmático, dizei: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?
- Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
- Teus amigos?
- Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhe...cido.
- Tua pátria?
- Ignoro em qual latitude ela esteja situada.
- A beleza?
- Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.
- O ouro?
- Eu o detesto como vocês detestam Deus.
- Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro?
- Eu amo as nuvens... as nuvens que passam lá longe...as maravilhosas nuvens!

in "O Spleen de Paris", Charles Baudelaire
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(partes do meu diálogo, acerca deste poema)
 
...
"e digo: não escreveu o que escreveu apenas por sensibilidades especiais próprias. ou pelas bezanas que apanhou. ou pelas coisas giras que fumou. fê-lo, também, por uma mulher que, se não 'o inspirou' o floriu e o permitiu: Jeanne Duval. a bailarina mulata já em fase de decadência que sacou dum teatro de vaudeville de 3ª categoria. e foi ela que o aguentou. e sustentou. há biógrafos que até sugerem que vendendo o corpo. e apoiou quando os credores faziam fila ou esperas - e há mais biógrafos que sugerem que ela contribuía em dose de leão para que as dívidas se sucedessem. que interessa? eram um duo, um par, um dois-em-um. Jeanne Duval. raramente aparece sequer nos rodapés. merecia mais. acho. e digo-o."
...
"(...) Baudelaire foi um grande poeta francês do séc. XIX, e a sua obra principal é "Flores do Mal". além dessa vertente foi o tradutor para francês da obra de Edgar Alan Poe (...). foi um boémio empenhadíssimo, e também consunidor de drogas. haxixe e ópio, especialmente. tem alguns livros onde divaga teoricamente sobre as propriedades criadores que esses produtos conferirão ao utilizador. há até, numa parte dum texto, um pequeno 'tratado' onde ensina a fazer haxixe a partir do pólen da planta. etc. não por isso, ou melhor: pelo conjunto quer da obra quer da vida pessoal, foi considerado um "escritor maldito". a exemplo, só cem anos após a sua morte (infecção aguda por sífilis) foi admitido post-morten na Academia Francesa, justíssimo dada a importância da sua obra nas letras francesas, e não só. (...)"
...
"(...)  foi um precursor, literariamente falando. usando "palavrões", um precursor do Simbolismo, forma artística e literária onde a subjectividade reina e, por exemplo na poesia – caso sub judice – se preocupa mais com o conteúdo que com a forma do poema. a realidade apreende-se por intuição e não pela literalidade. e este poema-prosa, “o estrangeiro” além do ser no seu conjunto está ele próprio cheio de metáforas. (...) cada sequência de pergunta/resposta é uma outra individual, sendo a final (nuvens) o corolário decifrador do conjunto. como uma cascata deslizando de degrau em degrau até adquirir a forma de lago translúcido saltado o último, um lago onde nos vemos reflectidos após a confusão das precipitações que o antecederam. não será o melhor exemplo, mas não está distante. as palavras esparramadas no papel não são suficientes para, per si, elucidarem o leitor: há que recorrer ao (seu) sentimento pois a análise objectiva normalmente é curta, espartilhada que fica na realidade física e palpável das palavras cerradas como se fossem dogmas. mas elas são sempre mais. o homem indagado é enigmático para o inquisidor por (simbolicamente) abstrair-se de todos os conceitos, afeições, “amarras” que normalmente nos tolhem… de olhar as nuvens como – essas sim – a vera realidade. a sua realidade última e master, a única que não considera dispensável sob circunstâncias concretas. a capacidade de sonhar, sem olhar ou sentir o momento onírico como mero devaneio de românticos ociosos mas sim como a essência do ser humano enquanto ser livre e consciente (sem contradição). chegados ao final do poema – que o é, que se lixe a métrica – sentimo-nos irmanados com o personagem: quem não olhou as nuvens e nelas viu muito mais que flocos, pinceladas no céu? fala-se tanta vez em «construir castelos no ar», e a expressão designa um sonhador. um inconformado com a realidade, alguém que nas nuvens vê muito mais que nuvens, ou talvez ele sim as veja como são: as maravilhosas nuvens, trans-nacionais, supra sentimentais, ideológicas ou religiosas, rainhas numa realidade alternativa onde os bens materiais não são o corpo mas o pormenor. ou, talvez, não o sendo sejam elas tudo isso - mas sob o formato-maravilhoso-da-nuvem-maravilhosa, e não a opacidade da realidade despida da imaginação. nelas, não há vínculos! entusiasmei-me a divagar e a escrever, e alarguei-me. olhei nuvens, encantei-me com elas e dei-lhes formato, formatos. neste momento, neste pedaço em que estive e não estive, em que escrevi conforme sonhava o que seria o poema das maravilhosas nuvens, eu fui o homem enigmático pois senti-me irmanado no seu sentimento e na sua visão. (...)" 

o bom e o horrível

 
 
escrever bem não chega. além do estilo, há que ter pensamentos que valha a pena transmitir. que sorriam, enfureçam, mas sempre - sempre - que estimulem o pensar. isto o autor, o escritor. depois há o homem.
 
quando me encanto com um livro, um autor, acredito sempre que no vis-a-vis com o homem tal encanto perduraria, e até se multiplicaria porque há segredos que não se escrevem mas descobrem-se na franqueza ou doçura dum olhar. «quem escreve e pensa tão bem tem de ser uma excelente pessoa!...» outros irritam-me, mas a "chama sagrada" que lhes dá letras assim não pode, nunca, provir de má gente. apenas um mau-feitio, um mau momento, quiçá. felizmente tem sido assim. mas...

tenho sempre presente um exemplo que colhi pessoalmente. um autor dum livro maravilhoso, uma ternura de história e um quase manual de escrever com simplicidade e bem. quando o conheci pessoalmente detestei-o de A a Z. um presumido. arrogante e parvo, um saltos-altos para dar nas vistas, patético nos esforços em ser o centro das atenções. a acrescer, fiz confidência deste espanto e desilusão a um amigo (também das letras), e horrorizei-me com o que me contou e desconhecia por completo. o seu passado de torcionário, aquando duma fase muito turbulenta no seu país: dirigira interrogatórios com recurso a tortura, incluindo a física, a colegas de escrita. talvez 'amigos' de tempos não distantes, talvez apresentando os livros uns dos outros, certamente por vezes sentados à mesma mesa e discorrendo sobre a magia da literatura, etc, essas coisas lindas para que se convidam os escritores a falar. mas aquele livro era e é fantástico, essa opinião não a consigo modificar embora, naquela altura, aquando das despedidas no fim do encontro, me tenha esquivado a cruzarmo-nos e apertar-lhe a mão.

poucos, e felizmente nenhum tão grave como este, mas tenho mais casos de profunda desilusão entre o homem e o personagem-escritor: de forma alguma quem escreveu aquelas frases feiticeiras 'é' a mesma pessoa com que antipatizei, por vezes por instinto, noutras - a minha regra, pois elaborar juízos de carácter carece de mais que feelings - por razões concretas e que justificam o posterior saltar de lombadas quando os olhos passeiam nas estantes. é triste mas às vezes acontece, e não está em nenhuma tábua que um escritor tem de ser um ser humano perfeito. doutras, é pelo que dele se lê. duvida-se, procura-se confirmação do texto e da autoria. não à cata dum vergonhoso plágio, ou da paráfrase, esse pecadilho mínimo do escritor. é pior. a manipulação, maldosa como são as manipulações servindo-se da tribuna do seu nome e do alcance que ele tem com os leitores.

hoje juntei outro nome à lista. um sul-americano. vá lá que de há muito não era dos meus santinhos: deixei do ler já há uns dois ou três anos (em livro ou em crónica) por, em minha opinião pessoalíssima, os últimos meia-dúzia que lhe lera, nenhum ter descolado da banalidade. adjectivo bruto, concedo, mas usei-o tendo em muita conta o muito que antes dessa fase má - que se mostrou residente e não passageira; dai o abandono - me e nos dera. e que lhe fez o nome. hoje vi, li, e comprovado, que se tornou um tarefeiro, escritor de cartilha e sem ética, numa lógica de "vale tudo", o que inclui manipular a roçar a mentira.

é pena, mas acontece. não há ícones sagrados, e nem na Índia as vacas escrevem um boi. há homens. uns assim e outros assado. é a vida.... desculpem o desabafo.

sexta-feira, 15 de março de 2013

órfãos


neste momento o ministro Gaspar e os seus ajudantes falam, falam. ontem à noite, muito à noite, o Primeiro também falou.

o meu espanto não é pelas más notícias. não o suspeitávamos: sabíamos. sem cursos de Finanças Públicas ou de Economia Política mas já sabemos antes de ouvir: vivemos o filme desde a primeira hora, e já houve altura em que não perdíamos pitada das legendas, crentes num happy end. o meu espanto advém de como conseguem, com caras sérias mas não pesarosas, tentando serem neutras, falarem logo a seguir em medidas e perspectivas animadoras. anunciarem decisões salvíficas para amanhã logo após reconhecerem o fiasco das de ontem, repetição em cima de repetição de nºs que já entram por um lado para saírem por outro porque ninguém lhes dá valor, ninguém os acredita.
deviam cumprir um período de nojo entre umas e outras. não é para nos suavizar o choque: já sabíamos. é pela dignidade. dignidade - e cuidado - quanto tocam no pedacinho que sobra da esperança. assim, as mesmas caras a darem uma no cravo e outra na ferradura, esse défice salta à vista e aumenta a sensação de luto iminente por nós próprios.

ouço-os, vejo-os, e entendo a raiz do vulgar ódio ao Estado. eles falharam, não fomos nós. há uma legitimidade rude neste pensamento, e repetem-se (mais uma vez) as justificações fornecidas pelos seus principais agentes para aquele sentimento. a orfandade de futuro é terrível.

terça-feira, 5 de março de 2013

Cancioneiro do Niassa

documento histórico da Guerra Colonial

Sua Excelência

um jornalista, Pedro Marques Lopes, tem-se preocupado com esta contabilidade tão curiosa e significativa: (hoje) passam 30 dias que Sua Excelência não abandona o palácio de Belém para nada. cagufa de ser apupado - há uns meses até dos putos da escola Antº Arroio fugiu, lembremo-nos. está sitiado. refugiado. Sua Excelência desistiu antes de todos nós. ele, "Primeiro Magistrado da Nação", "garante", e mais uns nomes bonitos, ele que devia ser o exemplo. Sua Excelência não presta. Sua Excelência é o maior logro político que tivemos e temos, entre tantos mais.

domingo, 3 de março de 2013

o smog do novo mundo.


o novo mundo. e nele - que chegou, que chegou, que chegou - somos as personagens por encontrar-nos, aflitos, intoxicados pelo desconhecido. identificarmo-nos, reconhecer um viver para conseguir vivê-lo sem nós de angústia, sairmos dum torturado gatinhar o inseguro desconhecido para o reerguer sobrevivente. tanto novo mundo, inidentificado e reconhecível: tudo é estranho, novo, contrário a nós, nós o conhecido agora velho, caduco conhecido. sairmos do gatinhar antes que a neblina se evole e fique est'outra realidade ofuscante, sem o consolo do conhecimento. só ela, densa, pesada, malévola porque agressiva. só ela, e nós perdidos.
elmos. escudos. lanças, espadas e maças, gritos, palavras pesadas: precisamos de proteger-nos. erguer defesas individuais, uma a uma se fará o colectivo. reconhecer sinais, modos, barreiras e campo livre. sabermos. exigirmos saber. há um nevoeiro contaminado, um smog que não nos foi arbitrário mas qual capricho imposto como castigo, e polui o conhecimento do que é composta esta nova terra que se pisa, que treme e nos vacila, que não reconhecemos e nos torna a nós inidentificáveis no trôpego bailado de insegurança que são os dias. gritam os que têm medo mas gritam igualmente os que nada dizem, ainda atónitos, ainda no torpor.
vivemos uma revolução. mais rude que se armada pois nesta não há balas perdidas pois todas atingem todos, mais violenta que se rolasse nas tábuas a cabeça dum rei: todos somos depostos da modesta majestade da segurança do amanhã, todos sentimos a angústia do guarda-redes antes do penalty quando abrimos um jornal, ligamos a televisão, erguemos o medo para sondar além da nossa janela. sentimo-nos mutantes porque o mundo novo chegou e exige que continuemos mas retirou-nos o amparo das seguranças com que vivíamos, essa riqueza que desconhecíamos possuir em acreditar que, fora tragédias, amanhã nascerá o sol e as sombras protectoras serão conhecidas. agora não. agora nada é conhecido, nada sabemos. nada nos protege, nada há além do medo, do smog, dos lábios mordidos pela injustiça de tudo isto.
eu vivo a minha terceira. uso as palavras, não as pedras, se as arremesso pondero-as, vão no ar e corro atrás delas e penso que bons elmos são abraços, sou um fraco contestatário como já fui um fraco revolucionário. uma vírgula nas multidões, mas esforço-me em colocá-la como a pausa certa, gosto duma dicção escorreita quando se lêem pessoas ou mundos – e este novo é deserto de clareza, amálgama de violências, chumbo rotundo em exame de regras sociais. nele, para ele ou acerca dele, chego a pensar na espada como defesa legitimada, aguço letras, busco sinónimos agrestes, a insegurança e o medo querem tornar-me no que não sou (não era), a vontade de correr cortinas é forte, desistir de ser vírgula e render-me a mais um na multidão, grito no ar ao sinal, caminhos formatados. a força da tribo, o refúgio e o conforto do clã.
 
hoje não fui à manif, e estou tão hesitante como antes e o sopesava. parte de mim diz-me que errei - elmo, escudo, espada e maça -, mas resistências antigas, tão resilientes como justificadas, dizem-me o oposto: gosto das bandeiras espontâneas e desconfio da alma das orgânicas. esta era híbrida. romantismo? seja. em parte. porque bastou assistir no pós ao absolutamente pornográfico espectáculo dos números e das manipulações à volta deles para confirmar os tiques, o repulsivo jogo das mentiras acerca do tamanho das pilinhas. foi uma grande manif, ponto. enorme e significativa. então, porquê mentir, estragar? porque o orgânico tem medo do inorgânico, receia perder a essência do seu poder – o controle. aqui chegado conforto-me: estive de alma (e de teclado), mas continuo a não gostar das partes do velho mundo que, seja o novo o que for, não quero, não gosto, de vê-las transplantadas. o meu individualismo é tão arreigado como é feroz o medo em não me encontrar inteiro neste nevoeiro que não se dissipa. mordo, se necessário. escrevo para isso.