Há um rufar de tambores que soa e me crispa, um afiar das
piores facas que se exibem quando irados: as do ódio cultivado em rancores
sedimentados, quistos que nem com cirurgia saem. Um atribuir de culpas além das
devidas, numa transferência conveniente: muitas delas deveram-se ao acumular por décadas de inconsciências políticas
e sociais que descambaram em rachas, em fracturas, que precipitaram soluções: as
revoluções nunca são pacíficas e doem sempre depois da euforia. Vivêmo-lo.
Mário Soares esteve/está gravemente doente e nem seria preciso uma ronda pelas redes
sociais ou pelos comentários às notícias dos jornais online para perceber o que
estava a acontecer: o pior. O ódio, esse
animal selvagem e sem nada de belo a comandar as emoções, a ressurgir
recalcamentos e frustrações, a mostrar-nos mesquinhos ao apontar o mau e
esquecer o resto (que não é pouco), e mesmo a distorcer factos de forma a
moldá-los à espuma viscosa que se regurgita.
Já vivemos a morte de vultos políticos que nos acompanharam
no crescer, indestrutíveis na nossa memória: Sá Carneiro, Marcello Caetano, Samora
Machel (falo como luso-moçambicano), Álvaro Cunhal, e um dia destes
provavelmente Mário Soares. A lei da idade permite poucas excepções, e o
aspecto dele infelizmente dá a entender que ela o está a pôr a jeito. Erros?
Certamente há carradas e de nada vale lavá-los. Talvez tentar entendê-los sob a
lupa das conjunturas em que aconteceram. Talvez. Mas olhar-se igualmente para o
inverso: o muito positivo que há, que teve, que fez. Não enumerar uns e outros:
olhá-lo, Mário Soares, o nosso velho Mário Soares, pela sua vida cheia, e cheia
de combates. Muitos, nunca lhos agradecemos devidamente embora deles tenhamos
colectivamente beneficiado. E muitos dos erros tentou empurrá-los para debaixo
do tapete, também é uma boa verdade. Mas…
A minha família, a que efectivamente conta, gosta de mim. E os meus amigos,
aqueles que não traem o adjectivo, também gostam de mim. Eu, de mim, este poço
de erros velho e sacana que mesmo assim olha para trás e não mudava muito:
fi-los com convicção, erros e acertos, passo a passo tropecei e corri mas nunca
sentindo-me sozinho: acreditei no que fiz como sendo não só o bom para mim mas
também para ‘os meus’ - e em sentido
largo, arvorado às vezes até numa ilusória “consciência nacional”: o bem
colectivo não me é nem nunca me foi indiferente. (Houve erros cometidos
conscientemente, mas não sou nem quero ser ‘perfeito’.) E, com isto dito e aqui
encaixado, quero dizer que embora a lógica dum balanço isento desdiga a justiça
daquele amor e apreço que me votam, não sou um erro nem é um erro haver quem
goste de mim: sei que tive carinhos nos momentos certos a quem os carecia e
mesmo quando deles se lambuzavam, e sei que mesmo quando errei não o fiz de
má-fé, queixando-me até de ser cliente mais assíduo ao azar que à sorte quando
é a vez delas mandarem. Em suma: esforcei-me. Sem falsas imodéstias isto é
algo. À minha pequenina escala, fui o máximo que consegui.
Mário Soares deu-nos muito enquanto homem político. Não foi
um “não faz”, que passa por cargos políticos sem que dele se note obra e rasto
além da palavra balofa. Errou? Errou. Mas fez. Acusam-no de gostar de confortos
– também eu! – mas ninguém dele poderá dizer que se acomodou, que procurou
sempre a sombra na sua estrada. Hoje, neste hoje tão carente de estadistas, de
homens públicos que amanhã apareçam na nossa História sem ser em embaraçosos rodapés,
ele é um deles. Português de baixo a cima, nas qualidades e nos defeitos.
Nosso. Respeite-se, por favor. Ou por nós mesmos: a nossa doença enquanto Povo e País ser-nos-á mais
fatal que aquela que o aflige se não entendermos isto.