iniciei ontem a leitura de “Longe
do Abrigo” (Edições ASA, 2003) de David Lodge, romance quase autobiográfico escrito nos finais dos anos 60 e ‘refeito’
parcialmente para esta edição, que é de 1984, e que, segundo o próprio conta no
posfácio e o editor subscreve em badana, é dos seus romances um dos menos lidos.
mas eu estou a lê-lo, iniciei-o ontem e portanto ainda vou nas suas páginas
iniciais, e já estou em choque. ciúme. até inveja. de certeza, reclamação
educacional! vejamos:
«(…) O ruído dos canhões era agora mais
fraco e muito distante. (a cena passa-se durante o Blitz de Londres, na
IIWW, e os personagens estão acoitados num abrigo) O Timothy baixou as calças do pijama e a Jill aninhou-se ao lado dele
ao mesmo tempo que puxava a camisa para cima. Ele sentiu os dedos dela, frios e
macios, na coisa dele ao mesmo tempo que ele procurava com o dedo a prega
pequenina entre as pernas dela. Sentia-se quente, em segurança e cheio de sono.
Esperava que houvesse outro ataque na noite seguinte.» (pág. 19)
mandei um salto! um salto para
trás num flic-flac de angústia premonitória, à procura dum dos dados que o
autor despeja no décor inicial e que,
por se estar no início, ainda não foram assimilados pelo leitor como
fundamentais para o enredo, até tal carência ser evidente e uma luzinha cá
dentro nos dizer que já passáramos por ele. página 10:
«(…)A Jill era da idade dele, cinco anos,
mas ele era mais velho, porque fazia anos primeiro»
“ora lá está… eu sabia!” _apetece
gritá-lo, de raiva, frustração, e embora se venha a saber logo à pág. 22 que a
jovenzinha Jill veio a morrer via encontro imediato com uma pesada ameixa caída
do céu, mais em concreto dum bombardeiro Heinkel
He 111, a sensação de que algo que
nos deveria ter pertencido dalguma forma dele se fora privado, e essa ausência em
tempo e modo próprios se viria a revelar como grave lacuna no desenrolar do
resto, a vidinha: eu, aos cinco anos de idade (nem aos seis; aos sete; aos oito…)
fora agraciado com «… os dedos dela,
frios e macios, na coisa dele ao mesmo tempo que ele procurava com o dedo a
prega pequenina entre as pernas dela.» (sic) pumba! pumba de integral sic que não tive e certamente veio a
fazer posterior falta e me atrasou quer o conhecimento quer talvez até o
desenvolvimento – há quem me diga d’eu ser muito
infantil…
nasci em 55 e nunca a minha
família teve de se abrigar de bombardeamentos ou doutras maldades próprias das
guerras, mas pelos vistos profícuas em prazeres educacionais e formativos a
felizardos que mais tarde deles se chibam em memórias
quase autobiográficas, fazendo frustrados como eu darem saltos
paginados, à procura do
seu momento,
e encontrando-o invariavelmente com
décalages
nada abonatórias para a sua carreira académica da vida. passando a afirmações
concretas, eu
situo-o algures nos
meus onze, doze, treze anos, e com entrada directa em acção da pior forma e lugar, e sem ensaios prévios:
escrito há muito tempo atrás, e algures em páginas que são
minhas… das tais
quase autobiográficas:
O ritual
Ele ainda
hesitou à entrada da humilde palhota mas os olhares dos amigos cravados nos
seus mais pequenos movimentos forçaram-no a entrar, vinte escudos poupados a
lanches nas mãos suadas.
Os joelhos tremiam quando despiu os calções e cumpriu um
antigo rito de masculinidade.
Mafalala
e data incerta, a primeira experiência sexual.
percebem a minha reclamação?
não sei se por aselhice própria, azar de vizinhanças em vestidinhos que me
calharam, ou por ausência duma guerra a sério que metesse tudo ao monte em quentes e seguros abrigos anti-aéreos,
na minha pilinha e além de mim só vieram a mexer
muito mais tarde que aos cinco anos, e quanto a preguinhas fofinhas a coisa
ainda foi mais tardia (de certeza que não toquei na da mamana gorda e ‘velha’, que me atendeu na tal ‘Mafalala e
data incerta’; eu queria era safar-me com o brilhantismo possível, e que fosse
rápido!).
agora, a caminho dos 58 e com rodagem mais que feita, sou
via memórias alheias confrontado com problemas íntimos, e pelos vistos nunca
resolvidos, com as pistas onde corri o meu passado. solavancos. troços
acidentados que, felizmente pois os azares não duram sempre, vieram a alternar
com asfaltos suaves e bem delineados onde foi um gosto correr. mas,
curricularmente, se me quase auto
biografo, hesito se não seria melhor recorrer à ficção do tal quase, esse ora véu protector, ora construção
reconstrutora. mas que iria alterar? não tenho nas minhas memórias dos cinco
anos uma Jill a proteger do incómodo das memórias tardias de brincadeiras
cândidas à idade mas de sorriso amarelado se mais tarde recordadas, e mesmo se
me recordar (e invocá-las) das romanticamente ardentes paixões que tive na
minha idade infante, além duns poucos beijinhos mais consentidos que dados nada
mais há, além da verdade que me iniciei na
coisa com uma puta para aí do triplo da minha idade.
acusei a carência. justifiquei o porquê de “ciúme. até inveja.
de certeza, reclamação educacional”. tenho razão? tenho. mas não há culpas
nesta queixa a atribuir a ninguém. nem à família hiper-protectora, nem a mim
que fiz o que pude e sabia – embora afinal fosse pouco: eu apaixonava-me, e de
que maneira. até lhes escrevia versos
e entregava-lhos com olhos de carneiro-mal-morto. e suava fininho ao mirar-lhes as pernas no recreio da escola. mas algo falhou, e hoje mistura-se tudo fazendo as páginas tão pesadas.
vou regressar ao livro. nem este escapou, e afinal qual é a
surpresa? sempre, em todos, há sempre páginas onde nos encontramos. neste, pelo
inverso. maldita vida, d'assim leitor!
(imagem: foto de Ricardo Rangel, sacada aqui)