quarta-feira, 18 de julho de 2012

nós, Florbela

 «Quem nos deu asas para andar de rastos?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?»

quem lhe lê os sonetos e depois lê a sua prosa em contos, crê estar-se perante duas autoras distintas, duas mulheres de anseios e fogos íntimos diversos. numa, a busca narcísica da miríade de céu sagrado que lhe pertence mas não alcança; noutra a lassidão das coisas simples, o desejo e o apelo da vida mansa do conformismo burguês. 

porém nessa dicotomia está ela. estamos todos nós. uma vez soneto, insatisfeito(a), apaixonado, sempre sonhador e esperançoso, noutra um conto de nós mesmos que escrevemos dia a dia com a realidade que são as nuvens que passam e seduzem, mas nunca ficam porque não as alcançamos. conto que tratamos com desvelo embora se sonhe com mais poesia, um soneto de nuvens e mais (mais!) céu.

e o best seller são os Sonetos. os Contos vendem residualmente. os sonhos vendem, e se em soneto esmerado ainda vendem melhor: a poesia extrema-nos e enternesce-nos, suavizando-nos o olhar quando o erguemos e vemos todos os céus como possíveis. quanto à realidade conformada... para quê ouvir contar de lindas desilusões? um copo meio cheio, quando de facto se olha e sabe como meio vazio? 

há duas Florbelas entre os seus sonetos e os seus contos, sendo afinal uma e a mesma: nós. nós, eterno humano soneto, impenitentes destruidores da prosa com que a vida se conta, se s'a escreve.


"Sonetos", Difel, 1984
"O dominó preto - Contos", Bertrand, 1982

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