domingo, 15 de abril de 2012

"quelle plume!"

na sexta-feira fui visitar a Graça, e além de ter passado um dia óptimo regressei a casa com a Le Magazine Littéraire, revista de que sempre gostei e que não comprava, sem exagero, há um bom ano. é que a Graça vende jornais e revistas, informação à antiga e amor que nunca morre por muito que estes écrans sejam apelativos por baratos e etc. «...mas não é a mesma coisa», e pronto. mal entrei na loja e a vi o clic reanimou-se e, quanto ao resto, «amanhã penso nisso»: abençoados €6,60, que desde sexta me trazem num namoro escandaloso pois até a jornalada do fim-de-semana anda a ser preterida! e a língua francesa revivida, amor adolescente de que estou a gostar do beijinho. enfim: uma desbunda das boas.

a Graça, além de loiraça, giraça, divertida e tão doce que faz pensar em donuts fresquinhos, é senhora dum dos mais bonitos negócios do mundo e foi por pouco que não a pedi em casamento :-))) lá me salvei duma tampa, mas trouxe a revista e suspeito que nunca mais hei-de pegar numa Le Magazine sem me recordar dos seus olhos lindos (lindos) e cuscos, e da sua gargalhada bonita. eu comecei a escrever, juro, para falar num escritor e numa notícia que li na revista, juro-o novamente. mas... lol ;-) ela é tão simpática e bonita (na loja os clientes dizem-la nórdica ;-) que é impossível deixar de sorrir quando recordo o formidável dia que foi a sexta, nós horas e horas na palheta, uma bula-bula onde cruzámos memórias comuns da terrinha com os nossos percursos pessoais, cá beira-Tejo.

bem... abandonemos por instantes a loirita mais simpática e gira que conheci nos últimos tempos, para entrar em matéria: Roberto Bolaño, que quem me lê sabe, é muito cá da casa. estou no café e leio numa crónica de Bernard Quiriny terem sido descobertos mais inéditos do fenomenal alazão chileno das letras (escrevia em cavalgada: a minha única definição da cascata alucinante que são os seus mega-romances "Os detectives selvagens" e "2666"), a somar aos póstumos já conhecidos "O terceiro Reich" e "Os dissabores do verdadeiro polícia", já cá traduzidos e lidos pelo je. mais dois inéditos, pelo que leio, um já traduzido e editado em França e não tarda cá e em todo o mundo: como o cronista refere Bolaño será dos autores mais editados post-morteum, o que não deixa de sacar um sorriso amargamente irónico se nos recordarmos das múltiplas dificuldades materiais que conheceu em vida. mas essa é outra questão, que se resolve na gargalhada de igualmente recordar que o literalmente colossal "2666", bichinho dumas 2000 páginas e à vontade uns quilitos foi estatisticamente o livro mais fanado nas livrarias e hipermercados 'tugas no ano da graça de 2010, ainda a troika não nos tinha avisado que as prioridades passavam a ser o arroz e as batatas. gargalhada eticamente justificadíssima pois o bom do Bolaño aprovava e praticava a apropriação revolucionária de bens culturais massificados, achando-o um acto de guerrilha social justo e impoluto.

porém o que me fez parar a leitura da crónica a 30 à hora - este francês enferrujadíssimo... - foi o pensamento de que este assalto ao disco rígido do seu computador, às gavetas e aos bolsos do escritor, tem uma faceta que, comparativamente, ainda me torna o vício da pornografia mais aceitável e "limpo": há um usufruir de herança que não é equivalente à abertura dum cofre, do portão do palheiro onde se descobre atrás de fardos de palha um "calhambeque" que afinal é uma jóia, que para voltar a brilhar ou para enriquecer os olhinhos herdeiros que o contemplam só necessita de correr-se com as galinhas de lá para fora, duma boa lavagem, uma revisão mecânica e estofos novos.

num livro que ficou "em projecto", quem o fará? e, saindo assim, "em bruto", como distinguir as linhas que (Bolaño) certamente seriam reescritas? _«tirem-mo da mão senão nunca mais páro!», dirá qualquer um que escreve... até que ponto estas edições, mesmo que bem identificadas pelo editor acerca da forma e momento como foram "descobertas" não constituem um assalto ao cadáver, um retalho indecente das suas partes só minimamente legíveis? tal como assistimos incomodados com o mal começado 4º romance da saga Millennium do sueco Stieg Larsson, cujas duas famílias herdeiras, a biológica e a romântica, brigaram publicamente e na barra judicial por meras 20 ou 30 páginas de despojos? isto cheira mal.

pousei a esferográfica para beber mais um café. o pacote de açúcar (e que vai para o bolso) ensina-me que "levar um puxão de orelhas" tem origem no tempo das Ordenações Afonsinas, em que pelo lido o puxão era bem mais violento qu'aquele que hoje conhecemos - e alguns na própria pessoa. suspiro, resmungo, chupo o cigarro de danado, e fecho o comentário escrevinhado para regressar à crónica do Quiriny, a dizer entre-dentes qu'esta actividade macabramente fúnebre de remexer os bolsos alheios à procura de mais que de trocos, tratando-se de escritores, é bem capaz de merecê-las bem puxadas. a doerem, em memória do falso finado, que não posso deixar de senti-lo como se assaltado por ladrões de tumbas.

ponto.

vês, Graça? :-) tudo serve de mote para largar à desfilada, tudo serve... até uma formiga num carreiro é razão suficiente para lhe estender um lençol, quanto mais o cadáver dum escritor que, repito, é muito cá da casa. beijito do je :-)

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