segunda-feira, 16 de abril de 2012

"a culpa", mea culpa



"Os homens têm necessidade da culpa porque ela funciona como um excitante para criar. Têm que criar as excitações da culpa. Têm que ser criminosos. É tão simples como isso." disse Agustina Bessa-Luís.

há anos que faço órbitas rasantes à noção de culpa, sem me decidir se aluno ou se sigo viagem. palavra. inclusivé já tive apoio da NASA nacional destas questões, que é como quem diz o departamento de psiquiatria público mais próximo. mas não me quero agora perder por aí. por aí, tanto que há a contar mas não é este o momento. a culpa:

torturo-me. são noites meio insones meio gritadas (vero), o corpo em espasmos como se estivesse para parir o diabo (já mo disseram), e a epicural ao meu alcance é esta e isto: esta catarse azulinha, este divã público,

falta-me o "conhecimento de ciência", que quando invocado faz os senhores das becas arrebitarem as orelhas, para alinhavar acontecimentos e causas e conseguir extrair com precisão. o que sai, sei: extracto de culpa. múltipla: das conhecidas e muita, muita, daquelas que nem eu suspeito mas que na minha vida herética ignaras gnoses vividas 'en passant' acarretaram, acumularam, e chegou a idade e tempo de deitarem fumo: a culpa.

cuidadosamente ponho na beira do papel a vertente religiosa: não me interessa, não cuido por aí além disso, mas também não amarfanho e deito fora a possibilidade da "culpa" ter ovo e ninho no formalismo infantil do acesso a esse conhecimento: a catequese é traumática. mas procuro mais longe, tão longe como o mais perto possível: a família (Lacan dixit? ou afinal é mesmo David Cooper que dixit?). as relações familiares. o conflito geracional, blá blá. por aí é bornal cheio, e "a culpa" inibe-me de desatar totalmente o nó, e só espreito: inibo-me de contar o comum dos meus problemas, tão iguais e tão especial e dolorosamente diferentes. "Allons enfants de la Patrie", sou tão patriota de mim mesmo que estupidamente faço segredo de Estado dos problemas comuns aos comuns. ("a culpa")

depois há todo o resto que me tortura e me faz gritar ao meio da noite, que faz da hora de descanso uma luta em que me agrido a mim mesmo em espasmos, choros, e em estúpida sublimação de substituição efectuar raides predatórios aos armários da cozinha, enfardando, enfardando, mas sem nunca engordar: o diabo tudo consome e não deixa esconder o osso da questão: há anos que me explodi, sem uso de colete de proteção. e aleijo-me, nem no tempo das pílulas às cores serenei ou esclareci, toquei mas fugi.

o César Amaral, que de todos que conheci foi o mais esperto, pôs-me a ler o Dostoievski, e na consulta semanal falávamos, entre viagenzinhas toca-e-foge cá pelo íntimo, no enredo do "Crime e Castigo'. (não matei ninguém; avanço já a explicação aos chocados com a revelação do tema das leituras psico-terapêuticas). e, já quase no fim, já quase em posse de carta de alforria para regresso à estupidez normalizada, enfiou-me numa sala cheia de monstros feios de discretamente sorridentes, e absurdamente opacos naquelas batas intimidatórias (ele não a usava. felizmente), mas avisou-me antes de entrarmos na sala: «estou contigo. é tudo uma cambada de asnos e só aguentas até onde quiseres. um sinal teu e o circo acaba». ah! o tema do conclave era obviamente "a culpa" (a minha extensão extensa à dita e da dita), e parece que alguém andava às voltas com uma tese do assunto e acharam-me perfeito para dissecarem. não interessa muito o que lá se passou, pois até pouco falei: mal abria a boca abanavam todos a cabeça com um ar tão sabido que me apetecia era mandá-los todos pró carilho: só o César percebia alguma coisa do que se passava (duvido que aquela malta, aqueles crâneos tão mal enjorcados assim vestidos de branco lesse mais além da biblioteca da Academia), e nem ao fim de meia-hora pisquei-lhe o olho e acabamos num instante com aquilo: a culpa, se cá mora, tem de ser tratada com dedos cuidadosos e não como um caldeirão de caldeirada de cabrito onde todos metem as mãos à procura dos melhores bocados.

pronto, já está. mais dia menos dia eu tinha de falar nisto. já está: tenho qualquer coisa esquisita e por resolver dentro de mim, e que me angustia. se fui sonâmbulo e pratiquei crimes durante esse estado não devem ter sido de monta, pois todos os dias leio os jornais e não dou fé de escândalos aqui na vizinhança. e, quando no estado consciente, sou pulha, mau-feitio, com fantasias de promíscuo que nem um vero mangusso, e até me armo em chef de cuisine amador. mas, palavra, não vejo nessas actividades lúdicas razão q.b. para este espalhafato diário, este espernear e gritar com a vida. pelas leituras, e por dumas ir extraindo as outras, já cheguei ao nome do ovinho: a culpa, lê-se bem na casca. agora o conteúdo ainda me é mistério, e não sei se a estrele ou faça dela ovos mexidos.

tenham um bom-dia :-)

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