como quem me visita sabe, de vez em quando dá-me para me armar em poeta. enfim.
são formas de traduzir estados d'alma.
há uns anos atrás criei um heterónimo/pseudónimo que retratasse a minha má-consciência - então não resolvida - de ter "abandonado" a revolução moçambicana. se a razão me impeliu para Mavalane, o coração doeu anos e anos: havia um pedaço da minha infância e mocidade que ficara lá, lá, no caniço e zinco da Mafalala onde tanto brinquei e cresci, lá na cidade de cimento onde fui tão feliz.
"José Alberto Sitoe" é ess'outra minha alma. o 'meu mano' que abandonei (fugi?). vejo-o nitidamente quando o penso e escrevo. sentado à porta da cantina, a garrafa de vinho barato na mão e o olhar malandro na conversa com as putas, suas amigas. os dentes amarelos de mulala e os olhos amarelos da vida. e rabisca. rabisca sentires, afectos e desafectos. gosto dele.
uma última nota. poucos sabem que 'o Sitoe' sou eu. muito poucos. há pouco tempo, na busca pela net dos meus poemas perdidos - tenho o péssimo hábito de não guardar tudo que faço - descobri, com um sorriso de prazer que não imaginam, que o meu lado 'Sitoe' era mais citado em blogues de poesia moçambicana que o que vocês conhecem, a faceta 'Gil'. Gostei!
aqui ficam alguns dos que até agora catei:
"Subúrbios by night"
Lá no beco da ti’Juliana
logo logo tem a cantina do Dias mulungo
e há uma árvore que sabe das coisas
ela viu tudo, tudo.
A luz do jeep cinzento
as fardas pretas e os bastões
viu as botas ouviu os gritos
ela viu tudo, tudo
lá no beco da ti’Juliana
onde o caniço está partido
eles bateram, bateram, bateram
no fim das luzes ficou um corpo caído
mais o caniço, tudo partido
nem o Dias nem ninguém
abriu uma janela, uma porta, um grito
a ti’Juliana dormia sem sono
a árvore viu tudo tudo.
Foi lá no beco escondido,
as fardas pretas arrombaram o caniço;
as botas pisaram, os bastões bateram
e a árvore viu tudo tudo
De manhã passos de criança
sob a árvore que sabe das coisas
misturaram areia ao sangue caído
lá, onde o caniço está partido
os pés correram as mãos brincaram
lá onde o caniço está partido
onde está a árvore que sabe das coisas
ela que viu tudo, tudo
Um dia crescerão e
eles sabem tudo, eles sabem tudo
"Machamba"
A enxada ergue-se e cai
ritmadamente
Uma para o imposto…
outra para o mulungo…
e mais esta, também…
Uma para mim…
tantas para não sei quem…
As AK's ergueram-se e soaram
ritmadamente
"tombazana, mamana, cocuana"
(à memória de Josina Muthemba Machel, falecida em 7 de Abril de 1971)
sete de abril é teu dia
dia da mulher moçambicana
seja esbelta tombazana
ou mamana de airosa capulana,
hajam cãs de cocuana
sete de abril é o teu dia,
dia da mulher moçambicana
todas és Josina, é teu dia
dia da pioneira na emancipação
da Mulher na mata renascida
que foi obreira na libertação
mulher africana, por graça moçambicana
aquela que é dupla grávida, antes e depois de parir:
no antes traz na barriga o Futuro,
carrega-o às costas quando ele aprende a sorrir
sete de abril é teu dia
dia de lembrar ao mundo
que haja vento, sol ou chuva
batas ou não o pilão
no campo, na mata ou na cidade
há um sorriso que baila e cresce
porque sete de abril é teu dia
dia da mulher que fez a revolução
"Cooperação"
Em vinte e cinco de Junho
mil novecentos e setenta e cinco
zero horas e coisa pouca
eu rasguei a minha certidão
enterrei a falsa filiação.
Passou a estar escrito
nas letras que te ensinei a ler
que a longa aula terminara
vencera a insubordinação
triunfara a minha razão,
e eu já tinha uma nação.
Em vinte e cinco de Junho
de mil novecentos e setenta e cinco
eu e tu mudamos o olhar
não te chamei mais meu senhor,
era dono da minha terra
já tinha uma nação.
Desculpa-me se, na euforia
onde rasguei a certidão
e bani o colonialismo
e esqueci a submissão
lamentavelmente, não me lembrei
de estender-te a minha mão...
É que
em vinte e cinco de Junho
quando ganhei a minha nação
esqueci-me que setenta e cinco
(ano de revolução)
era tempo de falarmos
em cooperação.
Eu dizer-te que já não eras
eterno senhor e patrão
(precisavas dum convite
eu rasgara a certidão.
Em vinte e cinco de Junho
mil novecentos e setenta e cinco
a festa era só minha
minha e dos meus irmãos)
Hoje
longe a festa
- mas sem regresso à lição
queres abrir a porta que não viste e
como irmão, apertar a mesma mão
que soube rasgar a certidão?
"Palavras em negro"
Antes de tu chegares com as caravelas
as missangas a cruz
eu tinha o meu ritmo sereno de crescer
lento como o Sol induzia
e eu falava
Contigo aprendi a comerciar
a vender os meus irmãos
que as caravelas levaram
deixando um rasto de progresso
um vazio e a cruz
e eu calei-me
Nas savanas em que eu caçava
descobri que um pala-pala era pouco
para quem tanta fome tinha
e matava vinte por prazer
e eu calei-me
Foi também contigo que aprendi
que as minhas mulheres eram tuas
sempre que o querias
tive filhos mulatos
e eu calei-me
Quando aprendi a tua língua
(pois tu não aprendias a minha)
descobri que ao dizer não
as bombardas falavam muito alto
e eu calei-me
Nas tuas guerras fui teu soldado
cobrei-te os meus impostos e fui teu cipaio
- até brinquei com os teus filhos
mas na tua mesa nunca houve mais um lugar
e eu calei-me
Prendeste os meu chefes
deste-me administradores
o prazo e o chibalo
o rand e o algodão
e eu calei-me
E quando quis falar
voltar a ser independente
disseste-me não em balas que senti
herdeiras das cidades que te construí
devolvi-tas
e, finalmente
tu calaste-te e eu falei.
Tanto que eu contigo aprendi...
(imagem encontrada algures na net...)
1 comentário:
eu dizes, o teu lado Sitoe ficou lá, tal qual como tu o descreves, com um pequeno esforço podemos "vê-lo" e temos a sorte de o ler.
Beijo, th
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