sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

o filme “As pontes de Madison County” (porque não me sai da memória)



Que ganhou Merryl após o fim-de-semana? Uma memória. Que silenciou enquanto foi viva. Fê-la sonhar algumas vezes, recordando a magia, a real e a que o tempo constrói, adornando à medida dos desejos e da necessidade de preservar o belo e esquecer o triste. Mas mais, certamente muito mais, fê-la chorar em silêncios asfixiantes que só ao seu diário contou. E Clint? Clint partiu, e seja por isto ou por aquilo nunca mais a magia se repetiu. Madison County é a realidade e um qualquer Egipto o sonho. Um sonho em fusos horários diferentes. Milhares de quilómetros reais que na fita mal se entrevêem, mas iguais aos que a vida cria e sentimos na pele da alma, e que o tempo excessivamente longo dos desencontros da vida não conserta.

Cinema é cinema e este é um filme maravilhoso. Quási espelho. Quase, porque findo o tempo do bilhete levantamo-nos, a porta da vida abre-se e as fantasias onde imolamos em prece surda o íntimo ficam para trás. Cá fora continua o bom e o mau. Lá dentro, nos soluços travados e nos conflitos íntimos digeridos em 120 minutos de filme, é a fantasia. Mesmo quando parece real, é episódica: o tempo termina convencionalmente: está no programa e sabemo-lo. Está o que queremos encontrar quando cruzáramos a porta, e mais que isso é engano e sabemo-lo assim. Quando guardamos o bilhete da sessão na carteira do peito, sabendo que ele não é só isso. Sonhar, quando se está “na merda”, tem a legitimidade mais límpida do mundo. Mas com humildade igualmente acho que permitir à alma cinéfila agrilhoar pedaços de nós, jardins gémeos, momentos de realidade onde nos sentíamos tão bem e privando-nos deles em pena perpétua, é insensatez excessiva por 120 minutos de ilusão. Tudo seca, há rugas sem cosmética possível. Restará? Um diário. Uma memória de tristezas, mesmo que o Autor se distancie e omita, vestindo as suas melhores roupas nas páginas e páginas de contar pouco mais que as partes de romance deliciosamente romântico (sim, esta parte é que é “literatura”.)



Sou um indefectível do romantismo. Comovo-me às lágrimas com uma história assim. Renovo o bilhete sazonalmente e, este filme, já o vi vezes sem fim (nem preciso de carregar no Play.) Sento-me sempre no meu cantinho, sem pipocas e de peito aberto, sentindo-lhe cena a cena até o estalar agitado das ilusões. Enterneço-me. Como condená-los? Não, condenar-me-ia a mim e às minhas ilusões, ao meus-vossos sonhos. Como criticá-los – no contexto assim dado, celofane tão bonito, embrulho à medida das desilusões ou encantos ou fantasias que pululam em cada um de nós numa ou noutra ocasião da vida? Em lirismo recenseador até cheguei a afirmar que Madison County era a aldeia mais populosa do mundo, que nela estão os bairros que habitamos em má comandita com a felicidade… Só os infelizes que se julgam totalmente felizes não a habitaram já em 120 minutos de catarse íntima, de ilusão.

Mas não é assim. Já o viram? Já, todos o vimos. Depois de chorá-lo restam letras de tristeza. O diário de Merryl são linhas tristes, mesmo que a música soe naquela casa (o seu lar) durante o momento da ilusão, cruzando-se com a realidade como dantes já não se lembrava dela soar assim. Tanto, que escreveu um diário – este filme. Neste contexto, naquelas pontes, tudo parece bater certo, incluindo a poderosa indecisão final na cena do semáforo, a mão tremendo no puxador da porta da pickup. Aperta-se-nos o peito e todos fazemos um plebiscito íntimo. Penoso. Até a mudança da marca de tabaco é romântica. Naquele contexto é tudo tristemente perfeito, belo até, e belo até na renúncia final.



Há mais. Há o fim dos 120 minutos e muito nunca mais será igual ao seu antes. Há valores. Há valores porque além das cortinas não é um filme. Poderão ocorrer perdas (algumas são certas.) Que vale isso? Um segredo por toda a vida, revelado quando “o corpo que amou” já esfriou? Que fica pelo caminho, que olhar devolverão as pontes onde antes se refugiavam os dias? Quem as caiará se falta, se falta e para sempre faltará a relação íntima que existia, a cumplicidade com a paisagem que a entendia – e a lente do fotógrafo errante, outro quixotesco sonhador de silêncios desconhecidos, levou? “Roubou”? O desmaiar da vida não se oculta nas páginas lindas que Merryl legou.

E esta continua a ser uma leitura apaixonada que faço ao filme. Sempre com olhos de espectador choroso, mas também de argumentista competente e que conhece quais as teclas para comover e impressionar. Ninguém é isento. Um filme? Lamento: é uma fórmula. É conhecimentos de psicologia e arte de romance, olho agudo às debilidades da vida e muita sensibilidade quanto às capacidades comuns de enternecimento. E arte, claro que sim. Soberbamente realizado e interpretado. Magnífico. Mas o argumentista termina ‘o serviço’ e vai à sua vida, e no dia seguinte inicia a redacção dum thriller. Os actores e demais recolhem os encómios e as estatuetas. Nós, espectadores, temos deveres acrescidos. Há mais além das lágrimas e das palmas. Há mais, e desvalorizá-lo é renegar a essência do filme, a mão crispada no puxador da porta, e que compreendemos que não se abre assim.

Fora das cortinas da sala há momentos em que há que optar, onde o acordo conciliatório não é admissível. É da essência primitiva humana e a violação é irreversível. Não há ‘razão’ que explique, que justifique, que releve. O consolo não existe. É simplesmente assim. Que resta, depois? Que resta? A dor aumentada, mascarada em lágrimas de filme, de ilusão. Duas vidas que se tocaram em 120 minutos sabendo que não lhes existia perenidade, e continuaram solitárias. Com as memórias, e com as perdas. Isto não está no diário de Merryl, está na vida além cortinas.

Disse. Em menos de 120 minutos de filme, divididos em sessões de entardecer de dias pálidos ou em manhãs de tristezas renascentes. Disse e não volto atrás na crítica, embora adore esconder-me nesta fantasia, neste também meu filme.

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