sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

com licença, isto é bonito


de "O SPLEEN DE PARIS (Pequenos Poemas em Prosa)", de Charles Baudelaire, ganda doido

'Um hemisfério numa cabeleira'

Deixa-me respirar longamente, longamente, o cheiro dos teus cabelos, mergulhar neles o meu rosto inteiro, como um homem sedento na água de uma fonte, e agitá-los com a minha mão como um lenço cheiroso, para sacudir lembranças no ar.
Se pudesses saber tudo o que eu vejo, tudo o que eu sinto, tudo o que eu oiço nos teus cabelos! A minha alma viaja no perfume como a ama dos outros homens na música.
Os teus cabelos contêm todo um sonho, cheio de velas e de mastros; contêm grandes mares, cujas monções me transportam para climas agradáveis, onde o espaço é mais azul e mais profundo, onde a atmosfera é perfumada pelos frutos, pelas folhas e pela pele humana.


No oceano da tua cabeleira, entrevejo um porto fervilhante de cantos melancólicos, de homens vigorosos de todas as nações e de navios de todos os feitios recortando as suas arquitecturas finas e complicadas num céu imenso onde se tufa o calor eterno.

Nas carícias da tua cabeleira, respiro o cheiro do tabaco misturado com o ópio e o açúcar; na noite da tua cabeleira, vejo resplandecer o infinito do azul tropical; nas margens penugentas da tua cabeleira embriago-me com os cheiros combinados do alcatrão, do almíscar e do óleo de coco.

Deixa-me morder longamente as tuas tranças negras e pesadas. Quando eu mordisco os teus cabelos elásticos e rebeldes, parece que como lembranças.



Com licença, isto é doentio. A lei proíbe estas cenas em vários graus, e o mais baixo que conheço é de 0,5 não-sei-quê de alcoolémia mas há outras onde qualquer posse até pode dar cana. Apanhe-se uma porrada na cabeça que leve a escrever assim, para o lermos assim, e ficaremos como o bom do Charles quando se cruzou com a sua Jeanne Duval, e teve momentos em que se esqueceu dos credores à sua perna, vida atazanada que teve e ainda no-lo escreveu. Até se ronca se for preciso. Rosna, ronrona. Como um homem sedento na água duma fonte. Porra. Doentio de bom.


Como uma receita louca, que se marinou na vida até nos encher da embriaguês da sua frescura, sabe-se lá se alguma vez sentida. Como se gerada nos imaginários que se foram desenvolvendo pedacinho aqui, pedacinho ali, e crescem-nos cá dentro, naquele aonde vago forrado com as páginas que escondemos quando se pousa um romance mas ele fica connosco, identidades novas em pedaços que se vão colando e formando novas unidades, já autónomas mas de raízes firmes: se se alojaram, razão houve. Estas mesclas transformam-se silenciosamente em vultos que adquirem presença, sentimo-los como se sentem uns olhos fixos na nossa nuca, e isso não se explica. Súbito, explodem-nos já realidades: construímo-los!


E nada se explica excepto assim, 'como lembranças' de rosto inteiro. Se não se explica o mundo, só se o conta, como, a nós? Na sala d'armas de cá andarmos há momentos em que quando se repara está a atirar-se ao florete por causas novas, cujas avózinhas já estavam esquecidas no pré-lar da velhice em que se transformam as nossas vidas, naquelass idades em que se olha com perturbante curiosidade o ralo da banheira, fazem-se almoços de turma pois nada dos hojes tem feeling, tem-se uma conta no Facebook porque a solidão tanto dói como é palradora. As ilhas formaram um arquilégo, sua natural ambição. A causa, a causa da justa, e acredito, sonho!, que tanto como há estocadas que ferem-nos cicatrizes para sempre, a mancha púrpura gerada na explosão tem desenhos estranhos mas com traços elegantes, um ferir-morrer que se expande naquele vazio de monções de que fala o poeta, súbito nada odiado, ficção que se tornou tanta realidade como uma pedra ou as mãos, os sentidos identificando como nosso esse direito à sua propriedade e defesa, e atrás daquela mancha púrpura está sangue, tanto nosso sangue, tanto que lá havia e queremos que continue a estar, é causa, é o inexplicável viver.


E fica.


Elaboram-se evasões. O spleen de Paris! A Paris das ficções, o mundo que tivemos em primeiro plano de sonhos quando não se escrevia "...do séc. XX" quando se dizia dos anos 60's e dos 70's. Hoje o nosso spleen. Maldita mania, o puto do caraças que não dorme, e pensa-se em Pérez-Reverte, ser-se dom Jaime Astartola como quando em puto se desejou ser o herói vencedor de todas as justas e dos sorrisos da donzela. Calhou-me o Baudelaire. Não premeditara. Os olhos pareciam ociosos mas estavam atentos a tudo, uma lombada apta a ser mudada para outro local onde encaixasse melhor, palavras cruzadas intermináveis, e por aí as memórias perderam-se, tanto Baudelaire, tanta Jeanne, até Ken Follett teve o atrevimento de se meter nisto com uma 'Leoparda' que se passeia por Paris, (e evoca-me La Charbo, que Não conheci, tanto que conheço e afinal nada conheço de Paris!) e essas são as páginas que me estão neste momento nas mãos. Os grãos, as ilhas, as monções, o arquipélago, a presença, o spleen, o inexplicável de nós, mas a necessidade de escrever a história, e esgrime-se, esgrime-se, matam-se os silêncios, foda-se não é fácil encaixar as ilhas, mais só mar não, e todos estes livros falam no mesmo, de todos voam páginas inteiras de estuporado plágio dos nossos sentidos, cópias tão perfeitas das nossas memórias que desconfiamos serem as lombadas que nos espreitam e não nós a elas.


Não é por aí. Carradas doutros mais identitários! Autobiográficos de momentos gémeos de nossos e que sempre nos espantam. Baricco, Alessandro: outro. Sem spleen. «Barry, para os amigos», ouvi. Poetas? de A a Z! Foi uma razia... É uma razia: leia-se Alice Viera-poeta e o meu espanto que não conhecia. (perdi muito do meu mundo que não era silêncio. não encontro o meu arquipélago, há ilhas como pedaços - mas são ilhas - por todo o lado, mais que boiarem placidamente são como rolhas em mar, não se afogam mas de nada servem, de nada são assim apoio e nada vedam ou alcançam: bóiam, flutuam e estão só presentes, lombadas sem préstimo além de recordarem as leituras de fracassos que as bibliotecas lidas têm sempre marcas, ilhas fracassadas sem um íman-arquipélago mas partes de 'lembranças' tais, que nunca, nunca, serão essa coisinha dum grão de memória).

A zona da Rue de la Charbonnière, La Charbo, já não deve existir como excitante de percorrer como se de montras de luxúria fosse feita, montras que são mais que montras porque em cada mulher há só uma mulher e mais nada, não compliquemos, entenda-se que a vida caminha como as cidades mudam, fenómeno que nos tenta primeiro a pensarmos primeiro como ela então era mais que se julgou, e depois a pararmos para olhá-la em contraste, accionando o tal fenómeno que cá marinava para tornar-se-nos tão realidade como então era a grande noite da semana aquela em que se ia dar uma volta a La Charbo, bar em bar, gargalhar, gargalhar. Os ventos da memória fazem de grãos ilhas, e o íman da idade dos balanços faz delas arquipélagos para onde sonhamos emigrar, filmes, filmes que vivemos como se os tivéssemos vivido, quando em verdade nasceram nas tais páginas do livro que se pousou, e se escaparam para cá dentro, acamaram e cresceram, história própria, rosto, 'lembranças' próprias: existe e tem o bom cheiro do tabaco, do ópio e do açúcar, a saúde dos poetas é o excesso dos sentidos, as causas, as cãs vivas de ardor.


(tou a escrever isto mas tenho bem mais de metade do cérebro noutro lado. é lixado para concentrar. lá e aqui)


O pensamento é terrível. Elabora, fixa e descreve, conjuga, tenta contínuamente pôr as nuvens num horizonte que esteja certo com aquele que tocamos. Arruma e desconstrói, fixa novos reflexos à realidade ajustando-os àquela pré-figurada na revoada emergente das tais páginas de ficção coleccionadas. É um 'spleen' figurativo, felizmente sujeito às boas intenções de Saint'Exupèry e livre do ópio e do açúcar de Baudelaire, na mão que devolve o livro à estante as manchas são de boa nicotina, boa, boa, que isso de dormir muito e oxigenado a 100% para morrer saudável é, desculpem-me, um viver bocejante com um final estúpido.

Livro novamente arquivado. Vivam os Poetas pecadores de improvisos! Viva a liberdade de não nos angustiarmos se nos perdermos, que num súbito recanto escondido encontraremos sempre algo apaixonante e que as ciências tecnológicas não assinalam nem detectam, sob a sua espartana programação de todos os metros e horas dos nossos percursos. Cerrar os olhos e estender a mão, tactear e extrair o livro pelo toque da lombada: sensações! os sentidos, o catarro da vida, a patine de viver. Isso tudo, e que a amálgama seja sempre assim num discurso incoerente, recheado de maus-ditos e referências sem contexto qu'as salve do olhar cristal da arte de laboratório.


som: "What Have They Done To My Song, Ma"por Melanie

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