domingo, 7 de dezembro de 2008

teclas, labaredas & Pitágoras (excertos - II)



(...) Passou um eléctrico mas não é certamente o primeiro. A alvorada cedeu ao primeiro Sol e a cúpula da Sé já não brilha como se uma primeira demão d'ouro lhe pousasse nesta névoa de madrugada novembril que se esvai, arrastada pelos carros que começam a circular amiúde. Não sei que horas são. Estou numa esquina da Rua da Madalena desde que acordei, circulei e estacionei-me aqui. Baixo-me e aperto o atacador dum sapato que cai, flácido, sobre esta calçada portuguesa onde, português, lisboeta e com um gato, sinto o ancestral fado lusitano dobrar-me como o atacador que agarro, irritado. Ela não veio. Flácido. Dobro-o naquele movimento que se aprende em criança e perdura pela vida como das poucas aprendizagens infantis que subsiste além e além. Além dos amores e das contínuas crostas que maceram a crosta coronária. Mas ela pulsa, ó se pulsa... "tlim-tlim!". Outro eléctrico faz a curva. Olho para dentro dele mas vejo muitos velhos e algumas velhas. Ela. Não a vejo. E não sei que horas são. Sete? sete e meia? fico-me pelas sete e um quarto. Um quarto, ora bolas. Não era um quarto, era a sala dum palácio onde um falso Turner deu o marulhar suficiente à lareira para eu adormecer enrodilhado na carpete junto às achas que iluminam a noite. O relógio deve ter ficado em cima do piano. Ao lado das flores, talvez. Não consigo. Em cama durmo sempre integralmente nu. O integral inclui o relógio e o anel pois quando o onirismo chama as horas desfalecem e perdem relevância. De adornos estou sempre cheio quando o momento de abraçar os sonhos chega. Esta noite abracei-os enquanto o borralho passou a cinzas e acordei não gelado mas mortiço pela ausência dum manto onde escondesse a noite. Os teus braços. O teu cheiro. A tua respiração, bafo que me aqueceria. O gato já cirandava e julgo que mesmo no seu cauteloso pisar felino foram os seus movimentos de olhos, argutos e onde naquele mau acordar julguei ler um travo irónico que me despertaram e vi que estava abraçado a mim, rodilha una quando esperara, sonhara - eis!, sonhara qu'a rodilha fosse um enlace de pernas e braços numa respiração a dois. A sala desmaiara com a noite que consumiu as velas até nem coto delas restar. Os pingos de cera que escorreram pelo candelabro e ganharam pé no piano lembram-me glaciares, e é tudo tão gélido. Rua da Madalena, diz a placa e a memória confirma-mo. "Madalena onde estás?" apetece-me perguntar a quem passa. Ninguém me responderia pois o teu nome não é esse. E se gritar o teu? E se gritar ao gato, ao Turner, aos velhos e velhas no eléctrico e aos táxis que voam publicidades, eles responder-me-ão? Alguém sabe do meu jardim? Alguém? - grito. A cidade despertou, o Sol ergue-se e a cúpula da Sé brilha de branca: roubaram-lhe a mágica do alvorecer.




São 08:32. Assim mesmo. Sabem como sei? passei à montra duma relojoaria e entre Breitlings e Jaegers e IWC's silenciados sem dono encontrei na prateleira de baixo a baixela marroquina. A a pilhas, a que trabalha sempre. O barato tem que trabalhar sempre para competir com a altaneira alta relojoaria que só se movimenta à vista de notas gordas, as já perdidas de circulação assim como a noite se foi e as velas se apagaram. Agora vou ficcionar para dar precisão cronométrica aos momentos altos das chamas e polir as claves que viçavam as flores antes das cortinas se fecharem e ter adormecido enrodilhado em mim. Eram exactamente 03.48 quando a minha mão direita desistiu de afagar o pénis e abandonei-o em brusca desilusão. Não era aquele cachecol que o meu frio sonhara e de que os vitorianos embalsamados nos óleos de parede escarneciam. Até o busto do Ludwig se ria de mim e eu achei-me ridículo naquele onanismo de desilusões. Confesso que tive vergonha também. Que pensaria o Pitágoras se num momento de gemido lamento abrisse um olho e me visse assim? poderia não ser compreensivo e então era a sala toda que se fazia cinzas e até no Turner o mar se agigantava enfurecido e as ondas implacáveis bateriam o carvalho dos cascos; e um pintor como Turner quando em fúria é senhor de pincel cruel. Abandonei-me fisicamente e virei-me para a lareira onde tentei ler nos fios de fumo sinais de ti. Terei adormecido sentindo-te e ao teu calor? a tua saliva lavando-me os recantos íntimos que gritam pelos teus lábios? a minha boca silenciou-se na doçura do olor de ti? e qual de nós terá dado o último roçar de lábios antes de adormecermos? Não sei. Eram 03:48 quando saí dum mundo e entrei noutro e nele te encontrei. Mão inerte. Pénis desmaiado. Uns. No sonho houve outros e tiveram companhia. Como sei? "Tu lembras-te dos sonhos antes da rua da Madalena e de no alvorecer vagueares sapatos tão desapertados como o acordar solitário?" Sim, sei!, digo aos transeuntes que caminham de ar tenso embora agora sejam, digamos, 08:51. Coitados. Um dia inteiro à sua frente e o Sol novinho em folha e aquelas caras, meu Deus..! Parece que vieram todos no mesmo eléctrico que fazia "tlim, tlim" na esquina da rua da Madalena. Sei-o pois. Sei-o e grito-vos porquê. Estranham o sorriso que se me abre dissonante na paisagem da calçada portuguesa. Eu que nem relógio de pulso trago e não adormeci com a mão cativa numa mama morta ao desejo como provavelmente tantos de vocês: o eléctrico da esquina 'dixit'. Sei-o porque o seio onde adormeci estava erecto de prazer e ronronava qual Pitágoras quando o borralho me quebrou e adormeci, Ludwig van sorrindo. Sei-o porque no alvorecer havia nas minhas calças uma mancha que já secara mas que não corri a lavar pois só a visita duma deusa a poderia ter feito nascer e crescer. As minhas mãos quando sonho não gastam carícias comigo pois tenho-te a ti. E gosto de te acariciar, deixá-las percorrer-te e olhar-te, os lábios húmidos entreabertos e que gosto tanto de beijar. Os olhos. Alagados em ternura que são a piscina onde nada a felicidade que me invade enquanto sinto os teus dedos percorrerem-me e fazem-me competir no ronrom com o gato. O borralho durou. Mais qu'as velas que deslizaram em cascata esbranquiçada qual sémen sobre o tampo das teclas e das flores. Depois acordei e saí. Sem o relógio, já o disse. Era completamente supérfluo. Eram horas e pronto, saí. Cedo, muito cedo pois vi que na tal cúpula ainda só caíam os primeiros pingos d'ouro do céu. Encontrei uma pastelaria madrugadora onde tomei um café. Como todos os primeiros cafés do dia soube-me bem. Li não sei a quem uma grande verdade: o dia só começa após o primeiro café. Até aí é uma névoa, um limbo. Foi a Luis Fernando Veríssimo recordo agora: o livro recolha de crónicas de seu nome "Sexo", umas trinta folhas de ironia acerca do viver. Mas todos o podíamos ter dito, senão a pastelaria não era madrugadora às esquinas perdidas das noites assim. (...) "play it again, Sam". Falta esta música no piano. Mas soa-me cá dentro no íntimo. Mesmo sem a intenção de recuperar o relógio ou dar uma festa, ração e água ao gato, um olhar ao Turner de humores ou rir-me do olhar circunspecto e censurador dos vitorianos que fugiram do eléctrico da esquina da rua da Madalena e se olearizaram nas paredes da sala, eu voltarei. Pelo sonho. Por esta mancha que me diz que quando me visitas tenho erecções não manipuladas em artesanato solitário. Voltarei e não sei o que a marroquinaria a pilhas ditará d'horas. Voltarei sempre e pronto. O que me dita e comanda é a sede do teu abraço, o nosso gemer uníssono, os sorrisos de prazer e a tal chuva de pó mágico nas cúpulas, o brilho de felicidade no teu olhar. E o borralho que me adormece e acorda simultaneamente, tu labaredas, tu meu grave lá bemol. (...)


(fotos gentilmente recebidas por e-mail face a este apelo. ambas estão identificadas na sua legendagem. Obrigado pelas contribuições)

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