terça-feira, 7 de outubro de 2008

Delirium tremens do dia-a-dia


" (...) A minha delicadeza prejudica-me de facto muito. Deu cabo da minha juventude. E da minha infância, e da minha adolescência. Ou melhor, não, não foi delicadeza, eu limitei-me a expandir infinitamente a esfera da intimidade. O que me fez perder, e muito...
Vou-vos contar. Recordo-me que, aqui há dez anos atrás, fui viver para Orekhovo-Zuevo. No quarto já moravam quatro, eu tornei-me o quinto. Vivíamos como cinco almas num corpo, não havia zangas entre nós. Se alguém queria beber Portwein, levantava-se e dizia: «Rapaziada, quero beber Portwein.» E todos respondiam: «Está bem, bebe Portwein. Nós bebemos Portwein contigo.» Se alguém se inclinava para a cerveja, todos se inclinavam para a cerveja.
Era maravilhoso. Mas, subitamente, comecei a notar que os quatro me afastavam. Murmuravam entre si e olhavam-me, seguiam-me se eu ia a alguma parte. Isto era estranho, preocupante... E eu lia a mesma preocupação, medo até, nos rostos deles. Que se passa?, torturava-me eu. Porque fazem isso?
E chegou a noite em que compreendi. Recordo-me que nesse dia nem sequer me levantar da cama: tinha bebido cerveja e estava triste. Nada de especial: estava ali deitado, tinha bebido cerveja e estava triste.
Vi que, pouco a pouco, os quatro me cercaram: dois sentaram-se em cadeiras à cabeceira e dois aos pés da cama, e olharam-me nos olhos com censura, com a crueldade dos que são incapazes de desvendar os mistérios que eu encerro em mim. Por certo acontecera alguma coisa.
- Ouve, - disseram-me eles. - Deixa-te disso.
- Isso o quê? - eu admirei-me e soergui-me um pouco.
- Deixa de achar que és superior aos outros. Que nós somos gente miúda e tu és Caim e Manfrd!
- Mas que história é essa?
- A seguinte: bebeste cerveja hoje?

TCHUKHLINKA - KUSKOVO

- Bebi.
- Muita?
- Muita.
- Então levanta-te e vai.
- Vou aonde?
- Como se não soubesses! Pelos vistos é assim: nós somos uns cabrões, uns canalhas insignificantes, e tu és Caim e Manfred!
- Desculpem-me, - disse eu. - Nunca sugeri nada semelhante...
- Sugeriste sim. Sugeriste-o desde o dia em que vieste viver para aqui. Não com palavras mas com actos. Nem sequer com actos, mas com a ausência deles. Sugeriste-o negativamente.
- Mas que actos? Que ausência? - escancarei completamente os olhos de espanto.
- Sabes bem que actos. Não vais à retrete, essa é que é essa. Percebemos logo que estava qualquer coisa mal. Desde que te instalaste aqui nunca ninguém te viu ir à retrete. Bem, podemos desculpar as grandes necessidades! Mas tu nunca foste satisfazer sequer uma pequena... tão pouco uma pequena!
Tudo isto dito sem um sorriso, num tom mortalmente ofendido.
- Não, rapazes, não me entenderam...
- Entendemos-te perfeitamente.
- Espera, não, não entenderam. É que eu não posso levantar-me da cama como vocês e simplesmente anunciar: Bem, rapazes, vou cagar! ou Bem, rapazes, vou mijar! Não posso fazer isso...
- E por que é que não podes? Se nós podemos tu também podes! Ou serás melhor que nós? Nós somos uns animais porcos mas tu és um lírio!
- Não... como hei-de explicar...
- Não vale a pena explicar, está tudo claro.
- Ouçam... compreendam... neste mundo há coisas...
- Sabemos tão bem como tu que coisas há e que coisas não há...
Não os consegui convencer. Tinham-me trespassado a alma com os seus olhares carrancudos. Comecei a ceder.
- Bem, claro que eu também posso... poderia...
- É isso mesmo: tu podes, tal como nós. Mas nós como tu é que não podemos. Tu és Manfred, tu és Caim, mas nós somos um escarro aos teus pés...
- Não, não! - aqui baralhei-me totalmente - Neste mundo há coisas... há esferas tais... é impossível dizer simplesmente levanta-te e vai. Porque há a auto-limitação ou lá o que é, há um reino de vergonha desde o tempo de Ivan Turguenev... e há o juramento nas colinas Vorobievo. E depois de tudo isto levantar-se e dizer: Bem, rapazes... É ofensivo... Quero dizer, supondo que alguém tem um coração sensível...
Os quatro olharam-me demolidoramente. Encolhi os ombros e calei-me, desesperado.
- Deixa Ivan Turguenev em paz, deixa-te de tretas. Nós também o lemos. É melhor que nos digas se hoje bebeste cerveja?
- Sim.
- Quantas canecas?
- Duas grandes e uma pequena.
- Então levanta-te e vai. Para que todos vejamos que vais. Para nos acalmar. Não nos humilhes e não nos martirizes. Levanta-te e vai.
Eu levantei-me e fui. Não para me aliviar mas para os acalmar a eles. Quando regressei um deles disse-me: « Com tamanhos sentimentos de vergonha vais ser eternamente solitário e infeliz.»
Sim. Tinha toda a razão. Eu conheço muitas das intenções de Deus mas continuo a não saber por que me deu Ele tanto pudor. E o mais ridículo é que este meu pudor tem sido interpretado tão ao contrário que me tem privado da mais elementar educação.
Por exemplo em Pavlovo-Possad. Levam-me a encontro das senhoras e apresentam-me assim:
- Este é o famoso Venedikt Erofeev. Famoso por várias razões mas, acima de tudo, por nunca ter dado um peido em toda a sua vida!
- Como?! Nenhuma vez?! - admiram-se as senhoras, e olham-me fixamente. - Nenhuma vez?
Eu, é claro, começo a ficar embaraçado. Não posso deixar de ficar embaraçado em frente de senhoras. E digo: «Bem, nenhuma vez... às vezes...»
- Como?! - ainda mais se admiram as senhoras. Erofeev... É incrível! Às Vezes!
Eu perco-me definitivamente e digo qualquer coisa do género: «Mas... que há de incrível, eu também... se... peidar-se é tão numenal... Não há nada de fenomenal em peidar-se...»
- Imaginem só! - as senhoras deliram com isto.
Mas depois espalham por toda a linha de Petuchki que «ele faz tudo ruidosamente e diz que não está mal! Que está bem
Portanto estão a ver. E tem sido assim toda a minha vida. Toda a minha vida fui perseguido por este pesadelo, pesadelo que consiste em ser compreendido não apenas deturpadamente - não! deturpadamente até nem seria muito mau! - mas precisamente ao contrário do que eu tencionava, isto é, de forma completamente porca, antinómica. (...)"

"De Moscovo a Petuchki", Venedikt Erofeev, Edições Cotovia, 1995, extracto de págs. 33 a 36.

(foto do Autor encontrada aqui. thanks)

2 comentários:

Anónimo disse...

Quando fôr grande quero ser louca como ele e como tu, e saber escrever grande e bonito...lol

Carlos Gil disse...

thanks Theo. mas não te gabo os gostos... ;)