segunda-feira, 16 de junho de 2008

Epistolar para a Terra do Sonho – elogio a Hyde Park

(…. pontilhado prévio vário, à volta do ser ou não absurdo o dispêndio em jogos de fortuna e azar)
E o Sonho, Johnny? o e os tais que só com cheques se resolvem - que os há, já não somos crianças com mesada e berlindes no bolso, e neles uma leiteira que salva qualquer enrascanço? Dois euros à semana alimentam a (vaga) esperança duma vida desafogada, uma reforma que eu e a Webina (já) merecemos pois cada ano que passa já pesa a dobrar, um grande empurrão à vida dos filhos mais velhos e o assegurar que as potencialidades da mais nova não se perderão, por escassez de recursos de quem tem de lhos prover. Tanto, e tudo material... Os Sonhos - os tais! - esbarram sempre neste muro que às vezes não sei, sabemos, escalar e fica-se no mesmo sítio com mãos, cotovelos e joelhos esfolados, a pele riscada pelo vermelho da derrota e da dor. Eis um lado, agora conto-te do outro e de como este íman íntimo atrai e repele e esse equilíbrio desiquilibrado alimenta de sexta a sexta, projecta um filme sabendo que o é eu, espectador, haverá hora em que terei de me levantar e deixar a sala e o escurinho, sair e enfrentar os raios cruéis do Sol a olhar o que sobrar da sessão múltipla que se vive, escrevendo-a.
Não abdico de fechar os olhos e deixar de ver, sonhando apenas. Não - respiro isso por sábio conselho íntimo dum mago ou duma vidente que mo leu numa bola de cristal: "não sobreviverás sem Sonhar, pois sem eles nada és e deixarás de acreditar que serás". Mais ou menos isso, Luna Park ou Parque Eduardo VII, um mago ou uma cigana, um engano de mim próprio como outro qualquer. Dois euros, a consulta semanal. Há vidas e momentos. Nesta e neste não consigo dissociar um sorriso Hoje e Amanhã sem a certeza que nesses mesmos dias o suporte material não claudicará. Senão fica este ricto de lábios amarelo ou amargo, lábios comprimidos e que comprimem a graça que não sai e não se escreve, o poema perro, o texto encravado. Eu, avariado.Dois euros à semana amenizam e enganam, são placebo mas também consolo. Iludem mas revitalizam. gastam-se mas é conta de farmácia suave, quando se pega na bula e lê-se as maleitas que curam, doseado e com conselho avisado por causa do perigo das overdoses. Dois, são dois. Pra semana outros dois e pra semana sei lá que ilusões precisarei para me agarrar aos 'dois' e não desanimar, alçar a gasta bandeira do Sonho como se fosse ainda viçosa e o seu brilho cegasse como já cegou quando acreditava no Pai Natal. É o meu remédio, e nas semanas em que falha ou por esquecimento ou por falta de receita para o avio, sinto-lhe a falta misturada nesta angústia da carência, da dependência do Sonhar: cá fora faz frio, seja que estação for e aquele manto é mágico - disse-me o tal ou a tal vidente. Ou disse-o a mim como agora to digo a ti.
É como o outro remédio que tomo diariamente, as pílulas de Musas que fazem sorrisos Colgate. Foi noutra tenda escura, paredes de caniço e telhado de chapa que tomei a primeira dose e desde aí fiquei adicto. Hoje, sofisticado por uma educação falsificada, coisa fina de autodidacta, digo-me aficionado e até ponho um lacinho se quiserem para o retrato. É tudo mentira: sou é um viciado, um adicto, e cheiro mal do sovaco. Adicto com cê antes do tê, sem acordo que faça o desmame a tal droga de que dependo: o amor perfeito, sofrido e chorado, juvenilmente platónico ou rasca de velho devasso - à escolha pois desde que a forma em nuvem sirva, o sapato e a sandália pra lhes trepar são sempre as Ideais. O suar fininho. As rezas e os conflitos espirituais do frade. Tudo, mas tudo está nesses e neste entrelinhado.
A vida literária está recheada, grávida com águas sempre correntes, de estórias como esta, de Sonhos escritos e que só são escritos porque não são realizados. Perversamente realizam-se no acto de escrevê-los, são tese e antítese, um Joker no rótulo do tinteiro. Fechada a caneta ou antes de abri-la entram pingos pela janela que molham as folhas e, a tantos, tantos! inutilizam a alvura da escrita que têm dentro de si – não gozem com a alvura pois que a há: eu já a vi, li. É por isso, diz-se nos ‘mentideros’ e alguns escritores chibam-se nos seus livros acerca dos outros, que os escritores são todos dependentes, adictos, agarradinhos ao pó das Ilusões. Fazem linhas de letras que snifam e depois arrumam noutras linhas, agrafam-nas e vendem-nas assim. Vivem disso, vivem assim. Em cada cinco que se lêem lá vem um. Eu Sonho, sonho-o assim, eis-me falho de originalidade mas magnânimo ao espelhar-me.

Semanalmente gasto neste tráfico dois euros, e de sábado a sexta vou escrevendo, escrevendo, escondendo o pensamento secreto de que à sexta descansarei. Farei um ufff! do tamanho do Mundo e, findo o repouso que cansará, dele depois darei conta ao mundo na forma mais simples que conseguir dizê-lo sem me engasgar. Que desejo que seja escrevendo-o, pois esse foi sonho dos sonhos e o primeiro de todos a ruir e levar-me ribanceira abaixo. Não sou W, X ou Y, sou o Gil e nem a mim me conheço - embora goste de ler e reler este desconhecido. Conheço-lhe as taras, os hábitos, os defeitos e as virtudes. Adivinho-lhe as alegrias e sofro com ele as dores. Comungamos um destino, enlaçamos as mãos e já não há forma - ou a queremos! de nos desunirmos.
Já viste que tanto, o tanto que dois euros à semana alimentam, Johnny? quantos enganos e enlaces proporcionam, que ruína e desgraça cairia se o Sonho acabasse e sobrasse o vazio das sextas estendido até à sexta seguinte, sempre, semanas e semanas sem sonhar, escrever, sorrir, imaginar? enganar-me? Não posso: estou 'agarrado'. Hyde Park espera-me mas terá de aguardar mais um bocado. Um abraço, mano. Fecha os olhos e imagina o mundo pelos meus e terás o flash de quando a droga penetra na veia e ilumina a realidade, pintalgando-a tal e qual como da primeira vez que pousei uma mão num seio, paredes de caniço e telhado de zinco, gasta esteira no chão: foi aí que comecei a sonhar além dos sonhos da minha idade e condição, eis o Princípio do Mundo e da tal nuvem de que a cigana falou em cavalgar. Entretanto foram-se quarenta anos e há a correcção monetária, a crise do petróleo e a inflação: tudo está mais caro. Na altura o upa, upa na idade mental eram uns enormes vinte escudos e em prata; hoje são duas rodelas de metais duvidosos, que em Euros dizem ser quatrocentos escudos o preço que se paga. Mas o mago, a cigana e a vidente, todos e todas me avisaram: Sonhar tem preço, e ele tem de ser pago. É o que faço - e por receita caseira, o que obriga a que o escadote e Hyde Park ainda vão ter de se aguentar sem o show de eu lá trepar.

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