sexta-feira, 1 de junho de 2007

Água, é água Inês...

Há chuva no olhar, diluem-se algumas letras na gota intrometida que inicia esta carta. Se não um rio de gotas melancolias mil, precipício onde as ilusões caem em cascata e capitulam em cachão nas águas revoltas, donde sobe uma neblina de gotículas que paira e molha a face enquanto olha-se a espuma das águas que se amansam, finda a fúria e a torrente, secos os lagos além da pradaria onde nasceram os fios dos sonhos, aqueles que não se sabem tecer além dos beijos da imaginação.

Aqueles que não soube enredar, inábil tecelão de rugas e rios de prata, fios de cabelos que se prendem aos dedos como a saudade se cola às memórias. Como a da tua imagem, que paira sempre que a água lava as meninas-do-olhos e vejo-te, espelho de mim, alma dos meus dedos e seu sopro loador. Inábil em contá-lo, inapto em angariar meios de subsistência à paixão que a soe num slow de letras, enlaçadas pela orquestra literária. O dilúvio do amor platónico, a taciturna chuva que molha a folha onde nos criamos e a lava revelando a sua poesia, papel onde nos sentamos e brincamos ao amor à Musa e ao dela ao seu Poeta, ribeiro d’águas juvenis e perenes como se só de ilusões fosse amestrado, e não é. És real Inês, é-lo tanto como é verdadeira a ilusão dum desesperado. Como elas, as águas, que, soltas em catarata molham a aridez da prosa e mostram os dedos enlaçados no límpido da cascata que na folha se desenha, sorriem no louvor à mítica e selam cada envelope com um sorriso lambido. Água, é água Inês… as palavras fugiram para fozes inatingíveis ao toque dos dedos, confluências que ficam além do alcance deste Cupido carteiro, este envelope contínuo que se fecha com um beijo à musa e só é aberto pelos deuses e pelas deusas, esses desconhecidos que moram além das pupilas em que nos reflectimos e pensamos, más discípulas dos códigos simples dos amantes e infiéis espelhos do rol de cores que o íntimo contém desde que a represa abriu as comportas e soltou a solidão, parda na sua plácida prisão de águas paradas.

Adeus Inês. Não tenho o tempo que autoriza a delonga do namoro eterno, urge espreguiçar o pensamento, regressar e repudiar este parapeito epistolar onde te espreito, há contas por encantoar e contos por escrever. Dizem que nasceu a Primavera e eu ainda não fui vê-la, cego pelas lágrimas da paixão ignoro outras rimas além desta cascata de te amar. O verde e o azul do horizonte apagam-se e nos vultos de espuma não vejo mais ninguém, enquanto neste enlaçar de promessas impossíveis avista-se o pingo da lágrima límpida que resvala gotejante do ponteiro, infatigável, nossos segundos de teu reinado. Adeus Inês, a divina. A cascata, a chuva que me faz gritar, o óxido que temo e repudio, o Medo. De ficar assim, para sempre incapaz de parar de te escrever torrentes de fogo e murmúrios, águas revoltas que cegam quando o torvelinho da paixão molha a folha, essa puta literária, esta fábula de realidades ficcionadas que brinca às Ilusões. Fiz-te Musa e encantei-me, galante estendi folhas à carícias dos teus pés, no ímpeto da corrente estendi a passadeira mais bela, o veludo rubro que encaminha pássaros e animais perdidos às muralhas do tal castelo de que se acredita saber o santo e a senha para entrar. Esse, o mesmo que se começa a construir numa praia à beira das ondas, nas margens dum rio ou onde seja que, olhando as mãos, vê-se um balde cheio do mais fino ouro, quilates de sonhos por construir e que não param mais, torres e muralhas que a idade agiganta tanto que se lhe perde o trilho, toc toc deixem-me entrar pois fui o teu criador antes das águas ocultarem o caminho.

Não me apetece falar mais dos teus olhos, resisto. Resisto pois afinal o que me apetece é mergulhar neles e nadar no seu tom, braçadas que me levem ao centro do lago onde nos espelhamos, eu e tu, a musa e o escritor, mitologia que encarno ao ponto da carne estremecer quando te sonho, dos dedos se tactearem na carícia de te escrever. Não, não devo falar mais desse lago de ilusões, as pupilas dos teus olhos e em como elas chispam e raiam quando lhes derramo a torrente deste amor escrito, este afago virgulado em mentiras, estas cartas que escrevo e eu não sou ninguém. Este atrevimento arrogante de ousar que das palavras nasçam realidades, te corporizes e inflames, inundes a realidade, tu que de tua graça és Inês d’Ilusões, casta por ascendentes pergaminhos e ónus de nome próprio, sedutora por apelido e de família vasta, enorme à míngua da minha solidão.

Desencosto a escada da muralha e renuncio ao torreão, procuro no invisível longe a nascente destas gotas e destas cartas, procuro a matriz do sonhador. Desenlaço os dedos e forço as letras na busca de rumos longe do teu corpo, montanha do meu imaginário que alimenta o vale que fiz atelier para a minha escrita. Renego-te, musa. Deixo-te, Inês. Solto-me saudoso da clausura de te amar, a barba molhada na tinta de te escrever, cor de lágrima. Vou procurar no Mundo, virar todas as pedras no caminho e espreitar em todas as moitas, alegrar-me-ei com as flores da Primavera e farei poemas aos pássaros, aos rios, vou perder os meus passos longe de ti, caudal tão forte e eu tão fraco que sou às suas emoções. A partir d’agora prometo que não ousarei mais o beijo tímido que esconde o fogo das paixões. E nem destas até falarei, calo o ardor que me jorra palavras para explicar o inexplicável, a beleza eterna da Musa. Vou abandonar a barca dos sonhos e não passo para o outro lado, não sigo mais o caminho para o Castelo, renuncio aos teus olhos e mato o idílio fictício de vê-los apaixonados. Este rio goteja tanto que me alaga, preciso escapar-lhe, sobreviver, ler nas nuvens e nas árvores doutros encantos que não a tua imagem que me sorve o oxigénio em beijos demais para poderem ser reais, e falta-me mais medo para respirá-la, realidade.

Voltarei à tua margem, sentar-me-ei num troco quebrado e deixo as lágrimas ligarem-se a ti: gosto do sabor da tua tinta. Gosto de ti, Inês. Amo-te antes de sabê-lo e de tu o saberes até, perspicaz como és. Vem dos tempos intemporais, vem do balde de areia e dos castelos, vem do gaiato eterno do teu sorriso – que antes de Carlos e Inês fomos crianças e essas são as mestras da paixão, alquimistas traquinas que d’areia molhada fazem castelos e habitam-nos sem se perderem em caminhos e margens de rios e sem caudais a atravessar. Voltarei a ti e de novo te farei tinteiro, escreverei Inês e colarei uma imagem, uma diva, outra musa. És tão eterna como a água que corre e sei que nunca conseguirei resistir ao apelo do banho do teu calor, ao afago de ternura das cartas secretas e dos beijos roubados, aos dedos entrelaçados e ágeis no desenhar do tema idílio, recorrente ilusão. Girarei o mundo e voltarei ao teu colo, meu ninho criador. Mas agora solto-me, liberto-me da asfixia do amplexo da paixão. É violento este rio, este amar literário, estas folhas d’ilusões escondidas nos recantos do castelo. Aquele, estas muralhas, esta tanta água quando te escrevo.

1 comentário:

th disse...

Sentei-me no sofá e tentei caminhar pelos meandros da tua escrita.
Encontrei tristeza e sonho serpenteando pelas palavras...Inês não desgostes o nosso amigo!
Estarei atenta, beijo, th