segunda-feira, 16 de abril de 2007

contas por/para encerrar

Numa parte qualquer do Xicuembo-livro fecho uma página, com tintas de empolgada e em relação ao período revolucionário moçambicano, com a pergunta mais coisa menos coisa: que se passou entretanto para, em três meses (?) ter-me metido nas bichas do consulado português e tirado o passaporte, tratado do mínimo resto e ala que se faz tarde, Mavalane way?
Há dois meses atrás conheci na Póvoa um intelectual com longas décadas de intervenção cívica e política, vividas e escritas e que não deixam dúvidas sobre o seu posicionamento ideológico e quais as piscinas políticas onde nada quando desvia as braçadas do seu pensamento dos mares académicos em que veleja em letras grandes, vela de referência, e, tratando a conversa à mesa (as melhores, sei lá se do informalismo do jarro se pelo agradável do treca-treca no vozear de pratos à frente) de memórias de Moçambique e da sua revolução, os sonhos e os dramas, comentou-lhe gozão o L., que estava á minha frente e que era quem eu conhecia pois ele é que chamou o H. para o seu canto, a meu grato benefício pois não o conhecia senão em nome e muito vagamente: a exemplo nunca tinha lido nada dele mas, por isso, pelo que gostei do relacionamento com a ‘personagem’ quer na informalidade do tal trato à mesa, quer depois aquando da sua alocução na Mesa em que estava integrado (uma das melhores que lá ouvi, e ouvi muitas), bem, falava-se da democracia popular, da onda revolucionária e de como ela é dada ao exagero acerca do aprazível que é o mar das ‘ditaduras do proletariado’ ou das ‘democracias populares’, e como disso foi montra o Moçambique de 74/75, diz-lhe o L., rematando uma conversa em que se abordara as razões que levara tantos como o H. a “abandonarem” a revolução moçambicana e o país, no caso dele mesmo com portas muito grandes declaradamente abertas, mão estendida ao seu ingresso: “houve uma altura em que o H. era dos poucos brancos que assumia que queria continuar branco!”. Claro que se falava na população ‘engajada’ nos ventos revolucionários e não da que lhe tinha profundo eczema.
Sem a mesma clareza de explicação intelectual/ideológica que do H. se tratava e, por via do seu exemplo, se justificava (vivi e vivo há três décadas com a conta mal-arrumada do meu ‘abandono’ da revolução moçambicana), senti esse sentimento crescer dentro de mim até se ter tornado incontornável, mais a mais sabendo-lhe cura e apimentada pela aventura de ir conhecer um Mundo mais "evoluído", ao que todos contavam e o cinema injectara anos e anos – todos até ao momento: a Europa, afinal minha matriz cultural, raiz familiar e até berço. Ao desconforto ideológico cada vez mais forte aliou-se à realidade de saber de claras provocações e perseguições racistas sob capas revolucionárias, uma mão de casos a que assisti, neles um ou outro onde fui personagem. Daí à bicha e ao passaporte “do passado” foi um instante. De ter declarado de todas as formas que me eram possíveis que Moçambique era o meu novo país e eu era e queria ser cidadão moçambicano, passei a uma inscrição no consulado como “estrangeiro”, tratei de me despedir no trabalho e de dar fins aos tarecos, nasceu uma agenda de bolso com números de telefone e moradas ‘em Lisboa’, fiz um plano mínimo e tratei de burocracias como o tal “papel azul”: ainda o tenho, não há muito tempo atrás e a mexer em pastas com papéis amarelados dei com ele, a colecção de carimbos que diz que eu nada devia ao fisco e aos serviços públicos da cidade, ela a dizer que, contas feitas, não tinha o menor problema em ver-me pelas costas, leitura desagradável mas que não evito quando dele me lembro: se eu queria “fugir”, a cidade, o país e a revolução também não mostravam irem ficar com saudades minhas, tantos carimbos a darem-me oficiais despedidas.
Um desencanto que foi crescendo, um desconforto diário, uma certeza em “eu não gosto do que está a passar aqui, eu não quero viver assim”. Tinha vinte anos, alguém a rondar os trinta era “um velho” e nos meus círculos de relacionamentos íntimos não havia ninguém com quarenta ou mais. Comprava o “Luta Popular” e outros quando lá apareciam e não podia deixar de me abismar com a liberdade que havia na revolução do meu ‘outro país’: as manchetes, os relatos das manifestações e a liberdade intelectual que adivinhava pelo que lia, não podia deixar de compará-los com o que se passava no meu dia-a-dia, na revolução que lá vivia. E a pobreza intelectual dos artigos e colunas do jornal e da revista de lá, então acho que até únicos: o “Notícias” e a “Tempo”, quando em confronto com o que me vinha em qualquer publicação que conseguisse, vinda ‘de Portugal’. Até da “Afrique Asie” que era então a minha única leitura internacional que recordo. Em Moçambique-LM editava-se só propaganda, única e de má qualidade como norma. Mesmo os ‘textos revolucionários’ em livro que imperavam nas livrarias era da cartilha aprovada, e não havia lugar a devaneios intelectuais alternativos, a exemplo os textos anarquistas e da quarta Internacional e outras dissidências desaparecem após a (boa) euforia livreira do pós 25A: havia livros que já não se compravam e cobiçavam-se a quem os tinha, restava ler “A Sagrada Família” do Engels (comecei este ‘n’ vezes e nunca consegui ir além das primeiras páginas, por isso o cito à cabeça), e inflamados discursos de Enver Hoxha e Kim Il-sung, a exemplos da parvoíce com que enchia o cérebro, e é se queria ir além da dieta nacional…
Depois havia o racismo de sinal contrário que era utilizado em abuso justificado com os abusos do outro tempo, perguntando-me eu o que tinha a ver com isso além da coincidência pigmentária… só que ouvia e via, e também recebi a minha dose, e não gostava do que ouvia, via, e senti. “não gosto disto assim, vou-me embora”. Dito e feito. À minha maneira e portanto às meias pancadas e por isso esta conta que sempre tive como mal encerrada. No fundo no fundo eu, passada a vertigem da tal onda, já esticado na areia da praia após os irresistíveis mergulhos na sedutora, pensava para comigo que não via mal nenhum em ser ‘branco’ e (já) não queria ser ‘preto’. E se em relação às paixões revolucionárias não sentia perda de fulgor, já era muito baço o brilho duma onde tais práticas existissem, tornando irreais os discursos oficiais. Perdia a galope acusadores emaranhados intelectuais pela cor da pele que tinha e assumia que gostava dela, gostava de mim assim como era e não via erro nenhum nisso, nem na cor nem em mim. E não gostava que não gostassem de mim por pensar assim.
Foi mais ou menos assim que “fugi”, estão aqui quase todas as parcelas desta conta que tenho por fechar. Se digo ‘quase todas’ é porque há sempre em cada um de nós um qualquer pormenor vivido que se nos agigantou a passou a estatuto de parcela, e das fortes, dalguns calhará falar valendo o que vale o testemunho sempre emocional de quem foi parte, doutros nem isso merecerão tão menores que são os 'grandes' problemas quando olhados ao telescópio que o tempo lhes arranja. Enfim e em resumo, em ‘três meses’ devolvi a casa ao senhorio, dei ao Luis de Brito, o meu melhor amigo, os livros e os lp’s (desconfio que se desfez dos primeiros ainda eu estava em voo, mas acredito se me disserem que os meus lp’s ajudaram a muitos fins de noite em ‘boa onda’), comprei bilhete e fiz duas malas, numa delas uma lata de pó talco “Jonhson’s” com, lá dentro, uma pequena banana de suruma de Nampula embrulhada em capa dupla de plástico, que nem isso a salvou de vir a ser autêntica pestilência fumada, tal o cheiro que deitava. Entreguei a BSA ao pai do Luis Kurika – era o acordo de quando lha ‘comprei’ por, salvo erro, dois contos e quinhentos: se eu mudasse de ideias e viesse para Portugal, deixava-a ao pai pois podia ser ele a mudar de ideias e a regressar a LM; o carro que tinha ‘herdado’ quando o meu pai faleceu foi entregue à minha mãe para o vender, e nada mais tinha ou trouxe além de quinze contos que transferi ao abrigo dum acordo qualquer de câmbios de divisas e com bichas numa esquina qualquer da praça 7 de Março, mais quinhentos escudos que troquei no aeroporto. Trouxe um lp com discursos do presidente Samora, que me aprestei a dar a uma 'velha' paixão e que ela recebeu com cara amarela. Eis as parcelas, arrumadas num instante. Menos a ‘tal’, a que não olhava de caras e que deixou a conta por fechar trinta anos: havia racismo “contra o branco” que ia muito além de margens dissimuladas, e eu nem tinha culpas pessoais pela saga colonialista nem vergonha em ser ‘branco’, dando-me mal com a constante ameaça e episódica realidade de, por tais, ser pessoalmente 'acusado'. Hoje, finalmente hoje, aceito que tomei a opção certa.
Estou a ficar fã de pontos finais.

2 comentários:

th disse...

É bom quando saldamos contas connosco mesmos, quando colocamos nos pratos da balança da vida as nossas opções e deixamos de ter dúvidas do acêrto dos nossos actos.
Dá-nos forças para ir em frente e deixar repousar o passado no sítio que lhe é destinado, numa prateleira onde o podemos sempre ir buscar, mas onde não nos estorva os passos.
Um beijo, contente por ti, th

Anónimo disse...

É muito bom podermos fazer um balanço (não muito grande por causa dos enjôos) e descobrir que tomamos decisões acertadas. Mas acho que melhor ainda é nesse mesmo balanço, decidirmos que há coisas que podem ser ainda alteradas e melhoradas.
Digo eu...não sei !
Bjs