o Carlos Silva, do Munditações, desafiou-me a juntar letras a uma das suas imagens, sugeridas pela visão dela. era um tronco de árvore cortado, um cepo. foi de sopetão e saiu assim (repito aqui o texto porque, relendo-o agora, achei-o algo empastelado e de dicção pouco fluída nalgumas partes, tendo-lhe dado uma "lavagem"):
"o tronco"
o tronco abatido, serrado pelos dedos que o desenharam num arabesco
de cicatrizes concêntricas além daquele momento, espelho dos espelhos -
ó, o rendilhado!.... - bate-me de chofre e suspende-me o seu desenho,
que já iniciara: «era uma vez uma árvore de tronco rugoso e austero,
que...»: não conta, não conta porque não sei: só suspeito. centenária?
na parte fugitiva voaram corações desenhados por canivetes seguros por
feitiços? e as folhas? como eram? talvez tão longíneas que, quando
caíam, planavam nos olhos como passarolas e se um pintor montasse
cavalete teria de alongar a perspectiva para captá-las em bando, na sua
viagem de silêncios até ao fofo do chão, ao manto que se conta quando se
fala na suave cama de folhas tenras (secas é uma palavra feia) que
existe sob todas as árvores românticas.
isso: uma árvore
romântica. que viu muito e nada conta, ou, porque o amor nunca prescreve
e na sua doçura ameaça exércitos, então foi abatida, serrada, e ei-la
despojo inadmissível como prova, já: os “gordinhos”, os corações
desenhados e autografados com a violência das setas egoístas dos
amantes, essas provas não circunstanciais e capazes de abalar um júri
renitente em aceitar a culpabilidade histórica das cicatrizes
concêntricas, esses documentos que são vivos além do pó porque a memória
não tomba quando uma árvore cai, evolaram-se do momento e deles não
conta a foto, e eu reafirmo só o suspeito.
curioso momento
este, esta anatomia fotográfica, este dissecar de ilusões, esta
pantomina da realidade: calhe, e a foto foi captada além esquina e mercê
de obras de requalificação, como costumam rezar as placas que se
desdobram em explicações para justificar a morte d'algo. talvez fosse
dum quintal particular e esta imagem é-me grata pois por trás visualizo
uma casa que envelheceu namorando várias gerações, talvez um banco à sua
sombra (a tal cama de folhas de regresso...), talvez mesmo um baloiço
abandonado, toda uma pátine que resistiu até ao momento da
placa e das obras de requalificação a matarem, e nos serrarem a memória.
talvez nada disso, cala-te Carlos, não abuses da ficção: é um toco
velho e podre, são os restos dos tempos, é o relógio parado, é a vida e
um seu momento. talvez.
mas prefiro a minha ilusão. uma
jangada. tábuas aladas. uma mesa tão gigantesca que se derrubaram
muralhas dum castelo para introduzi-la no seu salão mais nobre e belo,
ou, talvez (talvez) qualquer uso não discriminado e para aqui nada
importante à excepção das suas sobras: o desperdício industrial que nas
mãos duma criança faz um tronco de árvore pular e correr, e o mundo
avançar com ele como se no poema, esta poesia tão sorridente como 'a
sua' criança que da tábua de nada moldou um carrinho de rolamentos e
desliza nuvens de imaginações à velocidade estonteante do seu amor
infante, da sua fé na mestria da construção, quiçá e sem o saber sentada
sobre um coração que alguém, da tal casa com história e que tem um
banco sob os ramos que suportam um baloiço, e sobre tudo isso paira,
secular, uma árvore, onde alguém antes dele o desenhou e sem nada disto
prever. gosto mais deste talvez.
gosto tanto dele que não
me alongo, regresso ao retrato e pisco-lhe um olho cúmplice, matreiro,
maroto: «á magana, o que tu viste...». e sorrio, sorrio pois. não remato
dizendo que prefiro a ilusão à realidade, que do retrato do cepo duma
árvore carunchosa construí um romance, castelos, carrinhos de
rolamentos, e muito (muito) amor. tudo treta, meus amigos. e treta de
quem o pensou: eu conheço-a, à arvore. ei-lo, o truque, a carta na
manga, o segredo, a batota do narrador. conheço-a porque conheço-lhe o
baloiço, corri que nem um doido no seu carrinho, namorei e namorei-lhe
no seu colchão fofo (isso, isso), e também tive orgulho em possuir um
fabuloso canivete. reconheci-a mal a olhei. depois foi fácil: fechar os
olhos, sorrir e recordar...
foi assim... :-)
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