terça-feira, 8 de maio de 2012

o tronco

o Carlos Silva, do Munditações, desafiou-me a juntar letras a uma das suas imagens, sugeridas pela visão dela. era um tronco de árvore cortado, um cepo. foi de sopetão e saiu assim (repito aqui o texto porque, relendo-o agora, achei-o algo empastelado e de dicção pouco fluída nalgumas partes, tendo-lhe dado uma "lavagem"):

"o tronco"

o tronco abatido, serrado pelos dedos que o desenharam num arabesco de cicatrizes concêntricas além daquele momento, espelho dos espelhos - ó, o rendilhado!.... - bate-me de chofre e suspende-me o seu desenho, que já iniciara: «era uma vez uma árvore de tronco rugoso e austero, que...»: não conta, não conta porque não sei: só suspeito. centenária? na parte fugitiva voaram corações desenhados por canivetes seguros por feitiços? e as folhas? como eram? talvez tão longíneas que, quando caíam, planavam nos olhos como passarolas e se um pintor montasse cavalete teria de alongar a perspectiva para captá-las em bando, na sua viagem de silêncios até ao fofo do chão, ao manto que se conta quando se fala na suave cama de folhas tenras (secas é uma palavra feia) que existe sob todas as árvores românticas.

isso: uma árvore romântica. que viu muito e nada conta, ou, porque o amor nunca prescreve e na sua doçura ameaça exércitos, então foi abatida, serrada, e ei-la despojo inadmissível como prova, já: os “gordinhos”, os corações desenhados e autografados com a violência das setas egoístas dos amantes, essas provas não circunstanciais e capazes de abalar um júri renitente em aceitar a culpabilidade histórica das cicatrizes concêntricas, esses documentos que são vivos além do pó porque a memória não tomba quando uma árvore cai, evolaram-se do momento e deles não conta a foto, e eu reafirmo só o suspeito.

curioso momento este, esta anatomia fotográfica, este dissecar de ilusões, esta pantomina da realidade: calhe, e a foto foi captada além esquina e mercê de obras de requalificação, como costumam rezar as placas que se desdobram em explicações para justificar a morte d'algo. talvez fosse dum quintal particular e esta imagem é-me grata pois por trás visualizo uma casa que envelheceu namorando várias gerações, talvez um banco à sua sombra (a tal cama de folhas de regresso...), talvez mesmo um baloiço abandonado, toda uma pátine que resistiu até ao momento da placa e das obras de requalificação a matarem, e nos serrarem a memória. talvez nada disso, cala-te Carlos, não abuses da ficção: é um toco velho e podre, são os restos dos tempos, é o relógio parado, é a vida e um seu momento. talvez.

mas prefiro a minha ilusão. uma jangada. tábuas aladas. uma mesa tão gigantesca que se derrubaram muralhas dum castelo para introduzi-la no seu salão mais nobre e belo, ou, talvez (talvez) qualquer uso não discriminado e para aqui nada importante à excepção das suas sobras: o desperdício industrial que nas mãos duma criança faz um tronco de árvore pular e correr, e o mundo avançar com ele como se no poema, esta poesia tão sorridente como 'a sua' criança que da tábua de nada moldou um carrinho de rolamentos e desliza nuvens de imaginações à velocidade estonteante do seu amor infante, da sua fé na mestria da construção, quiçá e sem o saber sentada sobre um coração que alguém, da tal casa com história e que tem um banco sob os ramos que suportam um baloiço, e sobre tudo isso paira, secular, uma árvore, onde alguém antes dele o desenhou e sem nada disto prever. gosto mais deste talvez.

gosto tanto dele que não me alongo, regresso ao retrato e pisco-lhe um olho cúmplice, matreiro, maroto: «á magana, o que tu viste...». e sorrio, sorrio pois. não remato dizendo que prefiro a ilusão à realidade, que do retrato do cepo duma árvore carunchosa construí um romance, castelos, carrinhos de rolamentos, e muito (muito) amor. tudo treta, meus amigos. e treta de quem o pensou: eu conheço-a, à arvore. ei-lo, o truque, a carta na manga, o segredo, a batota do narrador. conheço-a porque conheço-lhe o baloiço, corri que nem um doido no seu carrinho, namorei e namorei-lhe no seu colchão fofo (isso, isso), e também tive orgulho em possuir um fabuloso canivete. reconheci-a mal a olhei. depois foi fácil: fechar os olhos, sorrir e recordar...

foi assim... :-)



Sem comentários: