Devia morrer-se de outra maneira
Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos...)
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...
José Gomes Ferreira
...e quando o li e ouvi,
lá*, saiu-me assim esta confissão:
"belo.
mas eu não quero morrer nem em fumo. não posso! tenho uma doença que
não me permite esse luxo "de morrer". tenho Parkinson no coração. ele
treme, treme, e sinto-me como um tubo de ensaio para médicos (ou
poetas, c'est la memme chose) ensaiarem ensaios tontos ou poemas
eruditos sobre as moléstias das
coronárias. não, não posso fazer-me em fumo. como! faria sinais. mesmo
assim, adelgarçar-me-ia em ron-rons e infestaria as árvores, as flores, a
atmosfera: Parkinson no gordinho é lixado. treme tanto que até eu tremo
mal o sinto a agitar-se, a acordar. e se ele acorda!... há momentos em
que o tum-tum parecem gritos, ouvem? eu ouço. se calhar só eu é que
ouço, se calhar o fumo só o veriam aqueles meu colegas de enfermaria que
mais invejo. sabem quem são? eu conto-vos. conto sim. invejo os do
Alzheimer. os "do alemão". que não recordam amores, que não palpitam que
nem uma batata frita, como diz a cantilena dos putos quando se gozam
uns aos outros por causa das paixões. os fumos, é verdade. estava a
esquecer-me. vêm? eu perco-me tanto... é do Parkinsom, certamente.
efeitos colaterais. as tremuras não: essas são dos directos. venham mais
médicos e tragam poetas: expliquem-me por favor. digam-me - mas
digam-me devagarinho para eu perceber! se vou ou não morrer desta
doença. é que sofro, sabem? apaixono-me e sofro. (do coração; um poema
ou um cardiologista por favor). se não chegarem a consenso, deixem...
cheguem-me um fósforo, snifem as cinzas e não espirrem com o fumo. sou
eu e não vos quero mal. nunca! é que, repito, eu não posso morrer, a
minha doença é mortal mas não posso morrer, tanto que me treme o
gordinho, tanto que me aperta o peito, tanto que me doem as memórias e
os hojes, tanto que suspiro amanhãs que ou nunca mais chegam ou quando
vêem põem-me tão nu que chamam-se desilusões. é a doença, o Parkinson, o
treme-treme. estou lixado. sabem o que queria? talvez o SNS subsidie.
um pacemaker milagroso, uma bengala que me salve. um apoio vitalício, um
penso rápido durável, um amor que não tremesse, meu ansiolítico
querido. e eu assim apoiado, ah! curava-me. banhava-me na cura e sarava,
eu maila a minha bengala. ilusões.
são fumos, são ilusões, são
nevroses, desespero, sintomas graves da doença: amigas (amigos) eu tou
mal, tremo, tremo, tenho Parkinson no meu coração!"
responderam-me que precisava era duma Junta Médica e não dum cardiologista. é esta a medicina que temos, que fazer? tremer, pois!
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