quarta-feira, 2 de março de 2011

a escrita de todas as desilusões: A praia




A praia

a maré subiu com ímpeto e recolheu-se ao Grande Lago da História desapiedada do seu rasto, levando consigo tudo que a areia não prendia tão solidamente como só é sólida a fé ou a impossibilidade. as raízes mais ténues soltaram-se, envolvidas no ciciar predador que as chamou às origens. a praia ficou deserta das tralhas do longo dia de veraneio tropical, e outro mar, o continental, foi inundado de náufragos, bóias uns dos outros.

depois as águas acalmaram. um novo ciclo emergiu e a praia retomou o seu aspecto de costas e ventre da vida, murmúrio suave de ondas e das oscilações da sociedade.

na natureza nada se perde e tudo se transforma, mas por vezes sentamo-nos a olhar o mar e perguntamo-nos do porquê da sua violência, esse músculo exibicionista, se, quando serena, as conchas na praia continuam as mesmas e as pegadas dos caranguejos são iguais às de antes da maré. e perante tanta naturalidade e beleza ninguém leva a sério as cores dum bocado de pano pendurado num pau: a fé esvai-se na areia da vida e as impossibilidades continuam iguais.

os náufragos? esses, nem para afogá-los a maré os levou a sério. esses, tinham uma insuficiência de raízes historicamente endémica que só à custa de vistos turísticos e lábios mordidos se resolveu, lágrimas daquela praia que o mar lava, lava, lava, diluindo-as sem espuma ou ruído no Grande Lago da História.

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