quarta-feira, 14 de julho de 2010

a minha rua



A minha rua não se escreve. Tem flores e árvores, carros estacionados em espinha, um banco que é meu e só meu (e ralho quando as velhas dele fazem sala nestes serões), tem pássaros que me acordam dizendo-me que a aurora espreita, tem o silêncio do lá vai um e a gritaria dos putos que jogam à bola no quintal da escola, asneirentos nas exclamações que, devem acreditá-lo, os farão mais crescidos e sedutores às gaiatas que lhes rondam os esforços daqueles e tantos outros golos lindos das suas juvenis ambições. Por vezes sinto que aqui se vivem todos os mistérios do mundo, que na minha rua reside um micro cosmos da sociedade e da natureza, e até acho que de mim. Por isso a minha rua não se escreve, olha-se como se lê uma reportagem, olha-se como uma fotografia de ambições e de fiascos, nem avenida nem beco, nem atalho que por lá ninguém ganha tempo ou distância para chegar a lado nenhum, tem um jardim com uma biblioteca e um lago, uma pastelaria quase na esquina, lá fecho o meu olhar nas leituras e nas folhas das árvores, adoço passos e engelho o ser-se, mas se vou à bica guardo o pacote de açúcar pois, essa, é boa é amarga, café natural como o mundo e forte como são as emoções, o sabor bailando-me na língua quando me acolho ao meu banco e cavaqueio-me olhando as árvores e o eu que reside em mundos além duma rua, penso nos pássaros e em jardins, em tudo que se sente e talvez nunca se escreva.

É a minha rua. Diz-me tu, olho atento, se as suas flores não são lindas, se não acreditas que se te sentasses no meu banco ouvirias os pássaros e travarias as conservas mais suaves, aquelas que não cabem numa rua que não é avenida mas também não é viela, é uma rua que quase não leva a lado nenhum embora na sua ponta se saiba duma biblioteca cravada em fundas fundações no centro dum jardim, cuidado e de relva aparada, um lago de águas paradas que não é espelho e não tem cisnes e mesmo assim é um laguinho bonito, e eu conto-te que se me sento fujo e galgo todas as esquinas dos mapas que não conheço mas sei-os porque se não os vi os pássaros cantam-nos e contam-mos, assim vivo tudo o que penso quando as velham fogem e me sento no banco das conversas que nunca se escrevem, é a minha rua e isto é tanto silêncio que afinal é bom viver aqui, não se explica mais e é simplesmente assim.

1 comentário:

ELCAlmeida disse...

Acho que vou seguir o teu sublime conselho.
Abraços
EA