segunda-feira, 6 de julho de 2009

Marmitas

Porque um avião se atrasou num aeroporto londrino acabei a jantar num modestinho café – restaurante – alugam-se quartos fronteiro à estação de comboios de Santarém. As declarações prévias: vim sem esperar pelo telefonema confirmativo de que o meu amigo tinha chegado à Portela, e no café aceitam fumadores. Não me perco na costeleta frita, que está deliciosa e sempre estaria tal a fome que tenho – mas está de facto – mas sim na sala comensal vazia a esta hora e quem sabe se nas outras, nos cortinados verde-claro igual ao das paredes e me vêm lutar com a caneta e com a faca (pausa), a ventoinha de pás azuis imóveis, o silêncio pois recusei que o televisor fosse ligado. Transportei-me ao passado, e nele se som havia nas salas de comer das pensões era o de rádios.

Nos idos do fim da gesta colonial as pensões eram vulgares em LM, Lourenço Marques, e recorda-me que além dos hóspedes amensados e dos comensais fixos havia famílias que optavam por lá abastecer as lancheiras, a coluna de marmitas cuja pega era a tranca das barras que a ligavam em cilindro de alumínio e de cheiros, a sopa na de cima que oscilava menos*. Que (pausa e termina a costeleta) as pensões não eram casas de uma ou duas noites a vendedores apressados mas tinham hóspedes fixos e comensais de contas ao mês, tal como esta um aparador com montes de pratos em cima, o inevitável quadro grande e barato com uma natureza bem morta, o grande espelho que me espreita a avivar as nostalgias, caem-me os olhos agora nas concessões aos tempos modernos que são o autocolante vermelho na zona de refeições, a seu lado um enorme extintor, só ele capaz de induzir a dois ou três raciocínios paralelos, por isso sigo com o olhar pela sala vazia, a mesa ao lado por levantar mas onde antes vi um calvo barbudo e quase idoso. Só ocupei o seu lugar no silêncio quando auto vagou e na memória ficou a imagem dum escritor russo, dos tempos em que pensava que todos os escritores russos foram calvos e barbudos, colete às riscas e viviam em pensões perto de caminhos-de-ferro ou noutro nevoeiro qualquer.

Nunca vivi numa, não sou russo e escrevo por paixão, tenho ainda cabelo embora olhe com grande apreensão o ralo da banheira, quanto a pilosidades acima do umbigo disfarço a pobreza facial que algures a genética encontrou para presentear-me com pastagem rala, que ambiciono seja vista como “casual look de três dias”. Se calhar não tenho sangue russo e daí é que a escrita não anda, não rola como a costeleta encontrou via e seguiu, mas já quando frequentava pensões em LM não era nem hóspede nem comensal, às vezes garfo alheio mas quase sempre visita que chegava para acompanhar ao café e ao mais que a seguir vinha, conhecia pensionistas e comensais, em tais ofícios conheci muitos cortinados verdes olhando-me, aparadores suspirando por movimento que lhes chocalhe os pratos, espelhos retratando-me e inevitáveis quadros de naturezas mortas a quem, em concessão pelo local, atribuo e outorgo muitos ananases, mangas e papaias, peras goiabas.

Terminei o café e mudo para a sala do letreiro azul onde o escritor russo amensado em Santarém me olha escrevendo enquanto as suas mãos realizam o artifício de extrair um cigarro duma caixa metálica sem que eu consiga distinguir o desenho da tampa sem parecer excessivamente curioso e, quem sabe de pensares russos, um inconveniente. Mas gostava de saber qual é, fica então em registo que é um florir estranho, um verde gasto e raspado e manchas amarelas que supus serem flores, letras em elipse belle époque que não consegui decifrar, provavelmente em caracteres russos e por isso desvio o olhar.

Frequentava-as por amigos que fazia, muitos ou mesmo todos jovens pouco mais velhos que eu mas que a vida de soldadinhos levara a amensados em pensões, por fortuna próprias e administrativas livres da castrense camarata. Lembra-me um, Luís, de apelido cinéfilo famoso e filho dum dos autores da fama, com quem privei à mesa amensada e em tardes no areal da Costa do Sol, por personalidades parecidas que casaram bem até um dia, e pela paixão comum por livros, à literatura indiscriminada pois era a idade em que tudo que viesse morria. Conheci livros que me teriam passado ao lado, mais velho e mais culto, vindo da metrópole doutros acessos à matéria, de classe social mais atreita a folhas assim, deu-mos para as mãos e agradeci e assim hoje evoco. A relação de amizade terminou naquela areia na tarde em que, espalhando Coca Cola pelas costas um do outro para melhorar o bronzeado, ouvi uma confissão homossexual que não me agradou nada, apavorou-me, ainda mais incómoda e inoportuna quando me tinha acabado de contar que ou a mãe ou uma tia se passeava nas ruas do Porto numa maravilha de design, beleza pura, então obra prima superior a qualquer natureza morta, um Lamborghini Miura**. Não dava Luís, mas lamento pelos livros e pela história do carro de que já não soube mais, e também por não ter sabido gerir o medo e a amizade, pelo café à mesa da pensão e a praia alivralhada terem terminado aí, que eras um gajo bem porreiro.

Numa pensão da antiga avenida Anchieta, pouco abaixo do café Cortiço, estavam alojados dois tropas freaks, um membro duma banda rock que à altura mexeu tanto comigo que nunca mais esqueci e sempre glorifico: os Melting Pot, rock puro e duro como soe dizer-se, no reportório havia Uriah Heep e Black Sabbath e nada mais que me lembre. Pensão que já frequentava para o café de companhia após o jantar, e a seguir uma ida aos quartos para enrolar as reconfortantes surumas, lá, nela, na tarde de estreia da banda, cinema Dicca, LM, éramos mais que o grupo ‘residente’ mas maior a excitação e no quarto pairava a neblina das esperanças fumadas com uma descontracção invulgar pois dias não são dias e aquele era especial. Daí a pouco um palco e uma plateia, os como eu que não sendo sentíamo-nos sendo parte do quadro e do concerto, o deleitável meio-termo entre o artista e o público que não era iniciado nos segredos, assim. Fumou-se a alegria e a fantasia e tudo correu bem, que a banda excedeu-se, que a claque gritou mas era só parte duma plateia extasiada. Vínhamos da pensão, lá “nascêramos”, e ouço o chiar do comboio e fecho, marmitas, russos carecas, queridas pensões, e o feliz atraso que me deu este espelho.


* diz-me quem se lembra - e tem toda a razão! - que a sopa ia na marmita de baixo, quer pelo peso quer pelo calor ajudar a manter quentes as superiores; era assim mesmo, com este 'picanço' recordei, e quando escrevi ainda hesitei e se optei pela vasilha de cima foi por ter achado que, mais próxima da mão, oscilaria menos. afinal a lógica era outra...
** outro erro: de manhã "bateu-me": o carro da senhora seria um Citroen SM e não o Miura. não sendo aquela beleza, não sendo mesmo beleza nenhuma, o SM era à época um ''objecto de desejo" pelo luxo, conforto e mecânica nobre aliados. mesmo assim gostava de ter ouvido o resto da história!

(a emissão de ondas hertzianas foi catada aqui. vénia)

Sem comentários: