sábado, 6 de junho de 2009

O fim do mar

O professor Bartleboom, que estuda os limites da natureza e está a escrever "o" tratado sobre, acha que o mar termina no ponto da areia onde a onda hesita um momento, aquele segundo em que o mar a chama e ela responde numa correria que a areia fustra pois suga-a, e o mar termina assim.

e não é que tem razão?

"O homem nem sequer se vira. Continua a fitar o mar. Silêncio. De vez em quando mergulha o pincel numa tigela de cobre e esboça na tela poucos traços breves. As cerdas do pincel deixam atrás de si uma obscuridade muito pálida que o vento imediatamente seca trazendo de volta à superfície o branco anterior. Água. Na tigela de cobre só há água. E na tela, nada. Nada que se possa ver.
Sopra como sempre o vento do norte e a mulher envolve-se na sua capa roxa.
- Plasso, há dias e dias que trabalhais aqui. Por que razão trazeis contigo todas estas tintas se não tendes a coragem de utilizá-las?
Isto parece acordá-lo. Isto atingiu-o. Vira-se para observar o rosto da mulher. E quando fala, não é para responder.
- Peço-vos, ficai assim - diz.
Depois aproxima o pincel do rosto da mulher, hesita um instante, encosta-o aos lábios dela e passa-o lentamente de um canto ao outro da boca. As cerdas tingem-se de vermelho-carmim. Ele observa-as, mergulha-as rapidamente na água e levanta de novo o olhar em direcção ao mar. Nos lábios da mulher fica a sombra de um sabor que a obriga a pensar "água do mar, este homem pinta o mar com o mar" - e é um pensamento que provoca arrepios."

lindo.

" - Bartleboom...
- Sim?
- Perguntai-me porque é que estou aqui. Eu.
Silêncio. Embaraço.
- Não perguntei, pois não?
- Perguntai agora.
- Porque é que estais aqui, madame Deverià?
- Para me curar.
Outro embaraço, outro silêncio. Bartleboom pega na chávena, leva-a à boca. Vazia. Disfarça. Volta a pousá-la.
- Curar-vos de quê?
- É uma doença estranha. Adultério.
- Como?
- Adultério, Bartleboom. Eu traí o meu marido. E o meu marido acha que o clima do mar entorpece as paixões, e que a visão do mar estimula o sentido ético, e que a solidão do mar me levará a esquecer o meu amante.
- A sério?
- A sério o quê?
- A sério que traístes o vosso marido?
- Foi.
- Mais um pouco de chá?"

embaraçoso.

Gosto de Alessandro Baricco desde que o descobri (vou no seu terceiro*).
Estou a gostar de Plasson e de Bartleboom e ainda não sei se gosto ou não de Ann Deverià, mas gosto da ideia do pintor que pinta sem artifícios além do rubor das cerdas carmim, e do filósofo que molha os pés na finitude existencial de todos os fins.
Magnífico. A história alternativa dentro da história, a imaginação do leitor, esse jogo de sedução que o autor, malandro, joga para vencer sempre que o romance é conseguido.

* entre o linkado e este apareceu - feliz coincidência! - nos brindes da revista Sábado "Sem sangue" , e o único comentário que lhe faço é que li-o em duas horas e meia pois nada se podia intrometer.

(imagem gamada aqui. vénia)

Sem comentários: