sexta-feira, 15 de maio de 2009

"Alguém"



Tanto são dez anos que para carregar cinco coisas que os façam vividos eu levava alguém. Para que me servem cinco realidades materiais se o imprescindível é sentirmo-nos além do horizonte e para isso necessitamos de alguém a quem contá-lo e igualmente nos conte de si? horizontes que não deixem o nosso cegar-nos?

A faca do Rambo ou um canivete suíço, eis a dúvida (mas concerteza levava alguém). Talvez um chapéu para o sol e de certeza uma manta para as noites. Tabaco: um volume gigante, na habilidade de multiplicar a unidade e adiar o cumprimento da eterna promessa em abandoná-lo. Um litro de tudo que gosto, enroscadinho como nos aviões. Acarretava o catering completo numa malinha para não contar à unidade e ludibriar a espartana alfândega, as regras, esta maldita tentação que nos faz ilhas antes de nelas desembarcarmos. Cadernos, canetas, um bom dicionário. A faca do Rambo ou um canivete suíço, eis a dúvida e delas não saio pois, a contar, já fora de ilhas estamos rodeados de gadgets e sempre necessitamos de mais, mais, tantos mais que afinal são mais menos: faltam-nos horizontes contados, Alguém. Sim, levava alguém. Provavelmente o tal chapéu para o sol e de certeza a manta para as noites. Uma pessoa não é uma coisa, não é bagagem, mas é alguém e Alguém é sempre essencial. Homem ou mulher, que me rala. As boas companhias não têm género.

Dez anos é muito tempo e há mais de quarenta que deixei de me equipar para este proposto: quando li o Robinson Crusoé acumulei numa caixa de sapatos todo o essencial: canivete, abre-cápsulas, um rolo de fio de pesca e outro de arame fininho, o molhinho de cromos repetidos que iam ficando das colecções que se sucediam e abandonava, pois podia encontrar, lá, quem neles visse a luzidia tentação das ‘trocas’ – «tenho o Yaúca! e tu?» –, e a pistola de fulminantes por causa das feras. A minha mãe andou dias intrigada com a faca de cozinha que desapareceu: ela não sabia que nas ilhas desertas podem aparecer cobras e jacarés. Mas desta vez teria de me ficar pela faca do Rambo ou o canivete suíço: envelhecer é substituir as magias próprias pelas montras que nos dão. Uns tempitos depois li o Monte Cristo e as ilhas apareceram-me como ‘má onda’ e parei o acumular: precisava dum caixão para fugir e não via maneira de arranjar algum, e onde o escondesse que não caberia na caixa de sapatos.

E agora vem isto, e na caixa só está o cisma que sem dúvida levava alguém comigo. Para não ser ilha, dez vidas de degredo.


(imagem gamada aqui.)

14 comentários:

Anónimo disse...

Carlos,

muito simpatico e divertido seu texto e lista!
Obrigado por estar nessa viagem!

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

Seu texto bem original, meu filho tb levou um canivete eu como mulher preciso de outras coisas, rs

peri s.c. disse...

Creio que todos nós que lemos Robinson Crusoé na infância, passamos o resto da vida juntando em caixas ou gavetas todo aquele material absolutamente necessário à sobrevivência em condições extremas ( a explosão nuclear ou a queda de um asteróide sempre são uma possibilidade ). Canivetes tenho uns 15, sendo 2 suiços completos.

Claire-Françoise Fressynet disse...

Carlos deixei a nicotina de vez, em dias já vão 9, foi com lavagem cerebral do Allen Carr (o livro)
beijinho, e flores que tu gostas!

Fátima Santos disse...

você, bem me parecia, é deprimente, indeciso e chato: nem vai nem deixa ir em volta do que fez e agora que é preciso...porra tem essa cisma de alguém convide o o padre, leve a empregada que lava as escadas do prédio ou aquele mulato de que conhece apenas os sapatos que lhe trata do carro...mas semopre pode convidar gente por aqui ...quem sabe...rss
mas vá: dez anos é um salto no tempo que nem dá por isso

Nely disse...

GRANDE!
Sem dúvida o melhor que li e me fez rir, parabéns.
Companhia e está bom assim...
Beijo amigo.
Nely.

Mírian Mondon disse...

Original e criativo como sao seus escritos!

O canivete Suiço está bem popular nessa blogagem, eu tirei o meu, porque não ia dar pra ficar sem meu violão, fazer o que né? rs

Abraço, um prazer retornar ao seu blog!

th disse...

é pá...tu gostas de florzinhas?
eheheheh

A Lobba! disse...

Gente...confundiu meu tico e teco...de qquer forma! Respeito tua lista!rsrs
Lobba de France!

Serena Flor disse...

Muito legal e criativa tua participação nesta tertúlia meu caro...parabéns!
Um beijão!

Adelino disse...

Carlos Gil, muito interessante a sua postagem. Como disse o Peri, que se orgulha da sua coleção de canivetes - já teve até post sobre ela - todos lemos o Robinson Crusoe num período qualquer de nossa vida, e com ele aprendemos muito.
Um abraço. Ótima semana.

Jorge Pinheiro disse...

Um belíssimo e original texto. Uma forma bem diferente e literária de abordar o tema. Parabéns.

jugioli disse...

Malas.... são malas

adorei conhecer as suas.

bjs.

@dis-cursos

Eduardo Santos disse...

Olá amigo. Postagem cinco estrelas, ALGUÉM vale sempre a pena, também não duvido. Gostei do texto, bem imaginado e melhor conseguido. Aprecio o que é genuíno e esta participação consegue-o, parabéns. Tudo de bom amigo.