segunda-feira, 9 de março de 2009

citações

"O rosto de Arturo, até aí cortês, sofreu uma transformação intensa e dolorosa. Soube que a rapariga era luz, a luz em torno da qual devia girar, a luz que possivelmente o devoraria.
- Não é demasiado nova? - perguntou.
- A fruta madura apodrece, é preciso comê-la enquanto está verde - disse o aristocrata.
- Quantos anos tens?
A rapariga olhou-o abrindo muito os olhos.
- Não o percebe. É austríaca. - esclareceu Margot.
- Wie alt sind Sie? - Arturo repetiu a pergunta.
O sorriso da rapariga estendeu-se iluminando até os últimos recantos da sua escura vida.
- Ich bin sechzehn und halb - respondeu: 16 anos e meio.
- Und wie heissen Sie, denn?
- Wie Sie wollen.
"E como se chama?", "Como o senhor quiser." Falou sem provocação, com a ingenuidade própria de uma embalagem tão delicada. Arturo imaginou que a jovem devia ter sido instruída nas artes eróticas desde muito nova, mas, apesar disso, conservava no seu interior um inviolável fogo de vestal sagrada. Ela era a donzela germânica, loura apesar de morena, a dama a quem qualquer cavaleiro devia encomendar-se. O dragão não devia estar longe.
- Procurei-te através dos séculos, pela noite do mundo, sem sono, sempre em busca de ti.
Arturo proferiu estas palavras em voz alta, sem desviar os olhos dela. A rapariga olhava-o sem conseguir compreender, mas com um ar curioso. Uma tosse fingida de Publio Medina fê-lo aperceber-se de que se estava a expor. Margot e o aristocrata observavam-no com um ar de grande desconcerto.
- Decididamente, o senhor é uma caixinha de surpresas - constatou a madame, como de si para si."
(págs. 57 e 58)

"Lá fora, a chuva continuava a passar as mãos sobre cada centímetro quadrado do mundo." (pág. 77)

"- Meu coronel - Arturo retomava o tratamento intencionalmente -, posso pedir-lhe um conselho?
- Não dou conselhos - respondeu Gandía de modo seco.
- Uma opinião, então.
- Acerca de quê?
- Bem... De todo este assunto... Que lhe parece?
Gandía nem sequer se voltou.
- O senhor conhece o princípio de Ockham? - perguntou a Arturo.
- Sim, diz que a explicação mais simples de um facto costuma ser a correcta.
- Pois bem, Ockham era um embusteiro."
(pág. 85)

"Bem - comentou o engraxador com complacência -, e então como é ela?
Arturo ficou uns momentos de olhar perdido, reflectindo sobre como procederia um cavaleiro para descrever ao escudeiro a sua dama. Falou de modo suave, acariciando as palavras.
- É a coisa mais bela e mais terrível do mundo."
(pág. 90)

"Um bando de aves cruzava o céu numa formação em "v", que alargava o seu ângulo à medida que se afastava. Quando já não conseguia distinguir os pássaros, aconchegou a roupa ao corpo e começou a caminhar pela avenida fora. Poucos metros mais à frente, contudo, foi detido por alguém que lhe agarrava o braço. Arturo voltou-se com um sobressalto. Era a velha.
- Há vivos que são tão belos para os mortos que estes muitas vezes ficam à sua volta para os contemplar - disse a cartomante com estoicismo.
- Que quer de mim?
- À tua volta há muitos mortos, Arturo.
- Já não precisa de continuar com a fantochada. Olhe, se é mais dinheiro que quer... - fez menção de meter a mão no bolso.
- O que te disse antes eram patacoadas. Nunca vi umas cartas como as tuas, filho. Vi mausoléus abandonados à luz da lua. Sorte e morte. Também vi reis. Poder e morte. Via a carta do Par: uma mulher e um homem. Ela está na casa do amor e ele na casa das contrariedades e do fim trágico. Cuidado com ele.
- Não percebo nada do que me diz - respondeu Arturo contrariado.
- Os oráculos são sempre assim: certeiros, mas imprecisos. Mas tu ouve, para não te esqueceres. Não poderás evitar que as coisas aconteçam, mas sofrerás menos.
- Não acredito nessas coisas.
- Ainda não terminei - interrompeu a mulher com a palma da mão erquida. - A mulher vai-te fazer feliz, mas também fará de ti escravo. E o homem... O homem é pérfido e enganador, está no mundo para fazer o mal. Vai haver violência e morte. E todos sereis devorados pela última carta: o dragão. Mas deves recordar que a força do dragão não vem do seu pânico, mas de um fogo interior que o consome. O verdadeiro combate terá início quando o dragão tiver de lutar consigo mesmo."
(pág. 97)


"A arte de matar dragões", Ignacio del Valle, Porto Editora, 2009

Sem comentários: