sexta-feira, 28 de março de 2008

"Este bairro que habito, esta linha manuscrita"


Eu tenho um bairro onde não habito mas a que chamo meu. Meu, assim em três letras e cada nicho delas ortograficamente cheio de verdade. Meu, porque no meu diário entrecruzar dos seus caminhos, enquanto distribuo envelopes que me são anónimos, sei que levo mais que facturas, contas e continhas às caixas de correio, levo aos corações e esperanças dos habitantes do Meu bairro as notícias há muito esperadas, quiçá também as inesperadas, no meio do montinho de envelopes formatizados em letras comerciais (facturas, quem as não tem? - deveria soar assim a cantiga que fala dos amores e de quem os não tem, era d’eco e coro realisticamente mais verdadeiros…), pois, dizia, no montinho anónimo há sempre lugar a envelopes redigidos à boa e velha maneira, antes dos computadores e, até, das suas avoengas antecessoras, as “máquinas de dactilografia”: à mão, envelopes com nomes e moradas escritos em letras desenhadas com mãos, umas firmes outras trémulas, mãos de gente e não de máquinas, conteúdos por certo mais nobres e válidos que qualquer campanha promocional que queira agitar as gentes do meu bairro.
Sinto-me especialmente responsável nesses momentos, quando, folheando os andares, os esquerdos e os direitos, me calha em mãos um desses mensageiros, não há vez em que não me interrogue sobre se, lá dentro, haverá notícias meramente banais ou o brado escrito dum coração desinquietado. É o meu bairro, são as minhas pessoas, os meus ‘clientes’ que afinal são é meus vizinhos, a quem sou portador de mais, muito mais, que meros extractos bancários dizendo-lhes que só lhes faltam meros vinte e tal anos e tantos meses para acabarem de pagar a hipoteca da sua casa, haja saúde e trabalho e, caso algum deste falhe nem que seja de forma irremediável, há sempre outro envelope com monograma comercial que diz, comunica, alegra, que foi paga mais uma prestação do seguro que tudo segura e cobre, e neste saudável e trabalhoso entretanto não se inibe, e cobra. Esse correio, estes envelopes, são o ‘spam’ – e perdoem-me a figura de estilo analógica!... que me enche a sacola que esvazio nas portas das ruas do meu bairro. E chamo-lhe ‘spam’, emocionalmente sou-lhe insensível ao potencial conteúdo por nenhum deles, nenhuma colecção deles, no meu imaginário valer tanto como um dos tais outros, os mágicos, os de letras resistentemente escritas à mão, personalizadas. Não conheço a maioria dos destinatários, quanto mais dos remetentes… nem é minha missão, afinal eu só devo distribuí-los atempadamente e sem enganos. Porém, com o hábito e o tempo que eu e o meu bairro já entrecruzamos, sei, adivinho sabendo que o coração não me engana, que esta carta que tenho na mão e delicadamente introduzo na ranhura, esta, uma das tais, “à mão”, vindo como vem de terras distantes e sendo como é para a senhora solitária que vive no segundo esquerdo frente, será do seu filho ausente, emigrado, que procurou longe a forma de reduzir o tempo com que o Banco conta escrever-lhe mês a mês a contar-lhe da hipoteca, taxas e juros, anos e anos, anos a mais que a esperança e as cãs que entretanto lhe nascem merecem, como a prata já brilha nos cabelos da senhora sua mãe. Lhes merece, nos merece.
Fico alegre quando assim sonho e fantasio o correio que distribuo, porta a porta distribuo estes sorrisos secretos, arauto que sorri aos seus vizinhos. Moro noutro lugar mas este também é o meu bairro e estes também são os meus vizinhos, a minha gente. Afinal, eles são gémeos.

Imagem daqui

quarta-feira, 5 de março de 2008

o equilíbrio

para contrabalançar o post anterior, aqui vai, à época, "Le Vin" (L´Âme du Vin) de Charles Baudelaire e da sua obra maior "As Flores do Mal" (com tradução de Fernando Pinto do Amaral), Assírio & Alvim, 2ª edição de 1993:
.........
Nas garrafas cantou, uma noite, a alma do vinho:
«Homem, pra ti exalo, ó caro deserdado,
nesta prisão de lacre vermelho e de vidro,
Um canto cheio de luz e fraternidade!
.........
«Sobra a colina em fogo, sei quando é preciso
De esforço, de suor e de sol bem ardente
Pra me engendrar a vida e me criar o espírito;
Porém não quero ser ingrato ou malevolente,
.........
«Porque imensa alegria sinto ao ar caindo
Na goela de um homem plo trabalho
E o seu peito quente é um sepulcro suave
Que me agrada bem mais que as adegas frias.
.........
«Não ouves ressoar os refrãos domingueiros
E no meu peito ansioso a esperança a gorjear?
Cotovelos na mesa e manga arregaçada,
Irás glorificar-me e estarás satisfeito;
.........
«Da tua esposa encantada acenderei os olhos;
Devolverei a força e as cores ao teu filho
E serei pra tão frágil atleta da vida
O óleo que enrijece aos lutadores os músculos.
.........
«Em ti hei-de cair, vegetal ambrosia,
Precioso grão que sempre o eterno Semeador
Lança, pra que do nosso amor nasça a poesia
Que brotará pra Deus como uma rara flor!»

interrogações

(sem primeiras, segundas, ou terceiras intenções: apenas como exemplo do 'sentimento de tragédia' presente no celebrado "Século das Luzes". e pela interrogação, pertinente, sempre pertinente pois claro, pois não haverá 'vivo' racional que não pense no oposto, e na sua potencial filosófica racionalidade.)
..................................................
Então, este Deus que eu sirvo deixa-me sem apoio!
Proíbe as minhas mãos de atentarem contra os meus dias!...
Eh! que crime se pratica perante esse Deus ciumento
Se apressarmos o momento que a todos nos espera?
Então, do cálice amargo de um mal tão durável
Será preciso beber a longos tragos a borra insuportável?
Este corpo vil e mortal será pois tão sagrado
Que o espírito que o guia o não deixa a seu agrado?
...................................................
Voltaire, "Alzira", V, 3, segundo "História do Suicídio", George Minois, Círculo de Leitores, 1999