quinta-feira, 17 de abril de 2008

'National Geographic' privado*

Todos temos momentos em que o viver se altera radicalmente e a vida, que até aí corria assim, de repente começa a correr assado. Fora a metáfora, há instantes que tudo alteram, o íntimo, a paisagem, as convicções. O primeiro beijo e o seu rubor e sabor, a perda de alguém que nos é querido e a dor da lágrima que decorre da sua ausência, uma mudança de casa e vida que transforma a janela do quarto num quadro de cores radicalmente diferentes; doutras vezes uma desilusão, súbita ou daquelas que com o correr do tempo se vão enraizando até à machadada que a corta e arruma no sótão privado das velharias. De tudo isso todos temos o nosso espólio e disso chama-se crescer, o instante da mítica virgindade perdida num ai e, quando reparamos, estamos grávidos de idade, prontos a parir a saudade dos tempos idos, dos rios que secaram e fizeram-se ruas anónimas, de chilreares que num repente soam e troam sem beleza e, só, em irritante urbana cacofonia. Todos os que no campo cresceram e aprenderam as primeiras regras da vida, disso vivemos e crescemos, e nos torna melancólicos quando uma chuva de saudade lembra a infância sumida algures num tempo que fora mais alegre e feliz, num desses momentos sem pressas e longe das corridas insanas de quem corre por hábito e já sem saber porque é que deixou de ser feliz.

Eram dezassete anos, podia ter sido aos quinze ou aos vinte e um. Mas eram dezassete, idade em que se pensa já ter construído os amigos definitivos, o rio da aldeia corre manso e é eterno o mergulhar nas suas águas, como eterna é a vontade que nada mude e se tenha eternamente dezassete anos, amando assim a riqueza do dia-a-dia despreocupado, o adiar do passo que marca e mata o fim da adolescência e revela o outro mundo, o néon enganoso e duro que faz encarar a vida adulta, ao caso a perda das águas do rio e o cheiro aldeão em que crescera, a saudade dos amigos que deixei de ver e dos pássaros que, de repente, sumiram-se do quadro da janela do meu quarto e em pinceladas de chilreios diariamente me acordavam.

Fui para a cidade. Fui construir a vida de adulto na mítica terra das oportunidades de bons empregos, fartura de tudo e, verifiquei tristemente ao longo dos anos, também ausência de tanto que me era querido. A exemplo, nunca mais fui à pesca como no outro tempo do mundo fazia e adorava fazer, o rio que passa nesta grande aldeia é sujo e cheira mal e por certo os peixes que lá possam sobreviver serão tão feios e sujos que, definitivamente, não quero vê-los e prová-los, menos ainda pescá-los do infeliz mundo onde em pesadelos possam existir. Vejo-os no National Geographic, os olhos adormecem às imagens da caixa mágica e recordam o tempo em que por veredas que só eu e poucos iniciados conhecíamos chegava a plácidos recantos onde o anzol era paciente e num repente ficava mágico, num amadurecer de tardes que também eram mágicas pelo silêncio cúmplice com a natureza, a carícia da água límpida na minha pele jovem, de tudo isso agora me lembro e disso dou conta.

Não há balanços a fazer ou contas a acertar. Cá, na urbanidade, erigi um futuro que na sua modéstia é recheado doutras felicidades; lá, na nostalgia, moram as memórias dum outro que já existiu, faleceu aos dezassete anos ao dar o passo para a realidade que vivo e construí com o esforço do trabalho e a sorte no amor. Lá, algures nas imagens que de vez em quando me correm nos olhos como filme em reprise, mora não a saudade de fadista mas um jovem que morreu. Naturalmente. Afinal é a lei do crescer e no enterro do passado há sempre uma pontinha de dor. Tenho é saudade dos pássaros, do cheiro e do silêncio dos campos, da minha outra janela e muita, muita mesmo, dos peixes das tardes em que não duvidava, parafraseando o Poeta, que o rio que corria na minha aldeia era o rio mais lindo do mundo.


* texto de ficção e não autobiográfico

Sem comentários: