segunda-feira, 21 de abril de 2008

a minha catarse (continuação ad eternum...)

num Grupo MSN uma e-amiga recordou a sua viagem de vinda de Moçambique para Portugal. era jovem e segundo o seu relato eram muitos os jovens no avião, havia violas e houve cantares, e os comissários de bordo foram generosos na distribuição de garrafitas de vinho. foi, segundo contou, a forma possível de 'esquecerem' o acto, a viagem para o desconhecido.
não resisti e contei da minha. assim:
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a minha viagem não foi tão 'alegre'. houve hipótese de haver uma viola mas saiu gorada quando paramos na Beira para "dar boleia" ao Gonzaga que tinha recebido um 24-20, segundo percebi... o seu violão foi-lhe 'apreendido' por um soldado da Frelimo à entrada do avião, sem de nada valerem os seus protestos de que não se tratava dum instrumento lúdico mas sim de trabalho... enfim, o 'Gonzas' veio a refilar até sobrevoarmos Marrocos mais milha menos milha, e não me recordo de quase mais nenhum pormenor, sequer da ementa ou se era 'bar aberto'. vinha calado e sisudo, não conhecia ninguém e ninguém me conhecia - sina que toda a vida me segue e à qual já me habituei.

parámos em Luanda para mudar do 707 para um 747, um Jumbo. era noite e estava um calor asfixiante, aquele ar parado e seco que arde na garganta e empapa a roupa, o nosso avião ficou na placa bem longe da aerogare onde devíamos aguardar pelo transbordo da bagagem e depois embarcarmos para a viagem directa até Lisboa, agora com novos companheiros de viagem, angolanos, ou 'tugas-angolanos melhor dizendo. já não era a "ponte aérea" mas ainda o refugo da mesma. na sala onde fomos fechados estava um calor sufocante, nem uma janela aberta, éramos largamente mais que os lugares sentados disponíveis. para cúmulo estavam lá já há horas, à espera de embarcar no 707 que nos trouxera, passageiros vindos de Lisboa e com destino à ainda LM.

reconheci uma cara, mas o cansaço e o desânimo, o estado d'alma, não estava para palavras quanto mais cumprimentos. e era recíproco, lia-se-lhe nos olhos cansados, no fato amarrotado, no suor que lhe empapava a camisa: um dos meus últimos ex-chefes no Sindicato da Estiva, um conferente da Permar que fora o último presidente do Sindicato nos tempos corporativos, de "comissões administrativas superiormente escolhidas" - que eleições nunca lá conheci em quatro anos de trabalho - antes e depois.... recordo-me perfeitamente do nome dele e de duas particulariedades: José Augusto Pimentel dos Santos, tinha um defeito num braço ao nível da articulação do cotovelo que o fazia, nessa zona, estar sempre afastado do tronco, ou seja tinha um braço "torto". e na caneta usava em exclusivo tinta verde. eu, que trabalhava no escritório, chamara-me logo a atenção esse pormenor pois nunca vira ninguém escrever/assinar sem ser a azul, vá lá a preto. uma excentricidade, que se me fixou e até hoje recordo.

o pior fora a 'viagem' entre o avião, parado a uns bons cem metros da sala da aerogare, e esta. foi feita a pé, cada um carregando a sua bagagem de mão, de cabine, num túnel formado por militares que depois percebi pelo linguarejar e pela tez 'morena', eram soldados cubanos. éramos olhados provocatoriamente, ouviam-se de vez em quando, naquela humilhante caminhar num túnel que nunca mais parecia ter fim, insultos indiscriminados, o tradicional 'colonialistas' e outros que não vale a pena citar. nem o ânimo que era mais desânimo que outra coisa, ou o calor, ou o armamento que os soldados exibiam, nada em nada levou alguém a retrucar. seguimos com o olhar baixo e estivemos encerrados, apinhados numa sala onde a temperatura não era inferior a bem mais de 40º, umas duas asfixiantes horas até que o transbordo da carga fosse feita e tivéssemos ordens de embarcar para a viagem final, um 'non stop' até Lisboa, com música de fundo dos resmungos do Gonzaga. que me lembre mal dormi, terei passado pelas brasas mas a excitação, os nervos, a ansiedade, o conflito interior com a 'fuga' de Moçambique e que estava bem longe de estar aplacado, não me permitiam fechar olhos, serenar.

chegamos à Portela manhã cedo, estavam 7º e pensei que morria de frio. na aerogare estavam uns balcões de atendimento da Cruz Vermelha, ou do IARN, ou seja do que ou de quem fosse, que me deram uma nota de 500$00 e perguntaram-me se precisava de alojamento ou alimentação. eu no bolso trazia a morada da "prima Amélia", em Campo de Ourique, de que não me lembrava nem ela de mim. disse que não, que ia para casa da "prima Amélia". e fui. tomei um táxi e dei-lhe a morada, Rua Adelaide e Sousa e já não me recordo do número, sei que o machimbombo 9 tinha uma paragem em frente. comigo foi assim.

vinte e oito anos depois encontrei o Gonzaga no piano-bar Sinatra que ele então tinha no Estoril, na noite onde lá fizemos a continuação da festa de aniversário do Zé Carlos, de Stº André. reconheci-o, claro que ele a mim não, pois nem eu fora alguma vez à Beira excepto para lhe dar a tal boleia, e também nunca ninguém se lembra de mim. o habitual. perguntei-lhe em que data viera para Pt, batia certo. falei-lhe na viola apreendida já nas escadas para o avião, batia certo. só este frio persistente, este gelo de memórias trinta e dois anos depois não bate certo. e acredito que nunca baterá. é por isso que digo em metáfora que "morri" nessa viagem, a primeira e única vez que me meti num avião - tão má foi a experiência e de tão baixo nível são as suas memórias. 20 para 21 de Janeiro de 76, ou 21 para 22 - já me baralho... e é mero pormenor irrelevante no meio de tanta memória dessa má viagem, se calhar acertada se calhar o maior erro da minha vida.

3 comentários:

Anónimo disse...

como é bom voltar a te sentir, mesmo que narrando o dia que partistes da terra onde fomos felizes e deixamos sem muita escolha. Cada um terá sua história daquele dia que de lá partimos. Me destes vontade de fazer o mesmo recordar aquele dia que tão triste foi para mim (para nós ), que por vezes achamos melhor não recordar, doi menos, mas por outro , pode até bem nos fazer, vencemos, estamos aqui!!!

É tão bom voltar a te sentir ;)
beijos e um Xi grande Tareca

Unknown disse...

Boa crónica. Eu vim depois, num contexto diferente, mas acredito que estas situações nunca se esquecem.

Anónimo disse...

Como é difícil revolver memórias que se varreram para debaixo do tapete...
Gostei e "linkei".

Abraço
F