Eu tenho um bairro onde não habito mas a que chamo meu. Meu, assim em três letras e cada nicho delas ortograficamente cheio de verdade. Meu, porque no meu diário entrecruzar dos seus caminhos, enquanto distribuo envelopes que me são anónimos, sei que levo mais que facturas, contas e continhas às caixas de correio, levo aos corações e esperanças dos habitantes do Meu bairro as notícias há muito esperadas, quiçá também as inesperadas, no meio do montinho de envelopes formatizados em letras comerciais (facturas, quem as não tem? - deveria soar assim a cantiga que fala dos amores e de quem os não tem, era d’eco e coro realisticamente mais verdadeiros…), pois, dizia, no montinho anónimo há sempre lugar a envelopes redigidos à boa e velha maneira, antes dos computadores e, até, das suas avoengas antecessoras, as “máquinas de dactilografia”: à mão, envelopes com nomes e moradas escritos em letras desenhadas com mãos, umas firmes outras trémulas, mãos de gente e não de máquinas, conteúdos por certo mais nobres e válidos que qualquer campanha promocional que queira agitar as gentes do meu bairro.
Sinto-me especialmente responsável nesses momentos, quando, folheando os andares, os esquerdos e os direitos, me calha em mãos um desses mensageiros, não há vez em que não me interrogue sobre se, lá dentro, haverá notícias meramente banais ou o brado escrito dum coração desinquietado. É o meu bairro, são as minhas pessoas, os meus ‘clientes’ que afinal são é meus vizinhos, a quem sou portador de mais, muito mais, que meros extractos bancários dizendo-lhes que só lhes faltam meros vinte e tal anos e tantos meses para acabarem de pagar a hipoteca da sua casa, haja saúde e trabalho e, caso algum deste falhe nem que seja de forma irremediável, há sempre outro envelope com monograma comercial que diz, comunica, alegra, que foi paga mais uma prestação do seguro que tudo segura e cobre, e neste saudável e trabalhoso entretanto não se inibe, e cobra. Esse correio, estes envelopes, são o ‘spam’ – e perdoem-me a figura de estilo analógica!... que me enche a sacola que esvazio nas portas das ruas do meu bairro. E chamo-lhe ‘spam’, emocionalmente sou-lhe insensível ao potencial conteúdo por nenhum deles, nenhuma colecção deles, no meu imaginário valer tanto como um dos tais outros, os mágicos, os de letras resistentemente escritas à mão, personalizadas. Não conheço a maioria dos destinatários, quanto mais dos remetentes… nem é minha missão, afinal eu só devo distribuí-los atempadamente e sem enganos. Porém, com o hábito e o tempo que eu e o meu bairro já entrecruzamos, sei, adivinho sabendo que o coração não me engana, que esta carta que tenho na mão e delicadamente introduzo na ranhura, esta, uma das tais, “à mão”, vindo como vem de terras distantes e sendo como é para a senhora solitária que vive no segundo esquerdo frente, será do seu filho ausente, emigrado, que procurou longe a forma de reduzir o tempo com que o Banco conta escrever-lhe mês a mês a contar-lhe da hipoteca, taxas e juros, anos e anos, anos a mais que a esperança e as cãs que entretanto lhe nascem merecem, como a prata já brilha nos cabelos da senhora sua mãe. Lhes merece, nos merece.
Fico alegre quando assim sonho e fantasio o correio que distribuo, porta a porta distribuo estes sorrisos secretos, arauto que sorri aos seus vizinhos. Moro noutro lugar mas este também é o meu bairro e estes também são os meus vizinhos, a minha gente. Afinal, eles são gémeos.
Imagem daqui