Quem olha do exterior para uma janela aberta nunca vê tantas coisas como quem olha para uma janela cerrada. Não existe objecto mais profundo, mais deslumbrante, do que uma janela alumiada por uma candeia. O que se pode ver à luz do Sol é sempre menos interessante do que o que se passa por trás dum vidro. Nesse buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida.
Para além das vagas dos telhados, distingo uma mulher de meia-idade, já com rugas na face, pobre, sempre vergada sobre qualquer coisa, e que nunca sai de casa: com o seu rosto, com o seu vestido, com os seus gestos, com quase nada, refaço a história dessa mulher, ou antes, a sua lenda e às vezes conto-a a mim mesmo chorando.
Se se tivesse tratado dum pobre velho, eu teria refeito a sua vida com a mesma facilidade.
E deito-me orgulhoso de ter vivido e sofrido pelos outros, que não por mim.
Talvez me digas: "Estás certo que essa lenda seja verdadeira?" Que pode importar-me qual seja a realidade situada para além de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que sou aquilo que sou?
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"O Spleen de Paris", Charles Baudelaire, Ed. Relógio d'Água, 1991
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