sábado, 30 de junho de 2007

o Nu engravatado

As camisas dos Andes que se vêm nas barracas de artesanato das feiras, em linho, daquelas às riscas multicolores e algumas com um capuz, mangas largas e muita, muita frescura à vista, mais do que os dois botões de aperto em nó e pauzinho mostram, são muito bonitas e até me admiro em como ainda não tinha pensado nelas para este Verão.

Claro que mal falei assim em voz alta, correndo-as satisfeitíssimo com a descoberta e as combinações cromáticas possíveis, recebi pouco entusiasmo. Houve equiparação da menina-dos-meus-olhos a pijama, ou nada encorajadoras além do simpático «sim, não é exactamente feio…», ao certo pensado em versão mais pormenorizada «enfim, ao menos que seja só a camisa e não se lembre do conjunto, calças e sandálias a condizer...», houve um abanar de cabeça que já julgava esquecido desde que meti um brinco na orelha – esquerda, sem confusões, e eu não trouxe nenhuma.

Eram a doze euros cada, conta já se vê que boa para acertos a quem levar à variedade, o que até nem é difícil quando tendo-as na mão e os dedos tacteando a textura, dela se extrai sem cerimónia e respeito pela loja mais que um fresco corporal em corte exótico e informal e evola-se uma filosofia de vida, alçam-se asas na frescura garrida duma camisa e, não tarda, está-se a assinar petições para uma magna reunião no green em frente ao Pentágono, baforadas mais esclarecidas e menos voláteis que as do (semi) fracasso de há quarenta anos atrás: uma multidão hippy abancou nos jardins e fumaram quilos de erva em volta do solene monstrengo, convencidíssimos que as ondas mentais e a fumarada que as afina eram suficientes para fazer erguer-se o edifício inteiro - e aquilo dizem que é mais que quarteirão-e-meio... A ideia seria a que, voando, das duas uma: ou os seus generais-habitantes compreendiam que há mais coisas no mundo que papéis e bandeiras e cancelava-se a guerra (Vietnam, então) ou não o percebiam e o calhau subia, subia, desaparecia na estratosfera, out completo que permitia a esperança de, esvaziando-se o cérebro mau, acabarem as maldades no corpo. Já li que há quem ainda jure, quarenta anos depois, que «sim! aquilo levantou pouco mas lá que levantou levantou, foi que eu vi e lembro-me bem...», tal a festança que foi.

E ajudou, a fumarada e as boas intenções foram grãos de pó nas cinzas que ajudaram a subir o sentimento nacional anti-guerra, a acção objectivamente poderá ter sido um desastre pois o monstrengo ainda lá está, pedra cal e cruzes e sem vontade nenhuma em levitar para uma visão global do mundo mais esclarecida, mas logisticamente imagino o inverso. Sem o garrido das camisas dos Andes da época, ao que me recordo e as velhas fotografias mostram com muitas cores, feitas vasos de flores e desenhos psicadélicos, os sessentas a virar para os setentas e o velho mundo quase a acabar (vivia o seu apogeu), sem isso ele não se tinha mexido um centímetro. Cinicamente podia acrescentar que os sentimentos anti-guerra são mais fortes quanto àquelas que soam a perdidas mas não o faço, prefiro acreditar que ele até levantou um bocadinho, mais meia camioneta de erva e da boa e tinha mesmo arrebitado, e não tinham advido os tantos sucedâneos que enchem aquelas paredes de mapas.

Uma feira e uma noite de Junho, uma barraca de artesanato com camisas lindas, linho do melhor e eu a pensar nas manifs onde não fui pois soube delas tardiamente e interrogo-me se ainda com pulmão para tanto, se ainda há ícones ou réstea de fé neles, se hoje a solidão que enche a Internet de barulho não se lamenta no garrido duma camisa, no sonho duns Andes que não conheço como, afinal, descobri recentemente que não conheci Che mas tive-lhe um poster na sala. Era uma sala de altares, foi há trinta e tal anos atrás e hoje, quando penso em redecorar-me, poucos daqueles posters voltam à parede da sala.

Só a doze euros mas eu acabei por não trazer nenhuma, apalpei-as tanto que fiquei com medo de, vestindo-as, a magia perder-se e passarem a mero pijama, dando razão a quem avisa que sonhar demais faz compras carotas. Que fosse pelo fraco modelo que físicamente sou é o que menos me rala; pior, bem pior, seria se descobrisse que ser hippy fora d'época é como camisa andina de barraca de feira, como descobrir que é verdadeira a estalada que nos diz que não vivemos uma época em que sonhar é benquisto, onde uma camisa garrida, exótica, não é vista como mais do que isso. E isso dói, mais a mais a quem dorme nu, hesitando entre baforadas de sonhos que cor terá a realidade para que mexa e levite, como é que se redecora a sala do individualismo, quando é que nos juntamos outra vez e se alguma dia haverá dito que «dessa resultou mesmo, lembras-te?», que não pois já não há posters nas paredes.

Uma camisa na mão, dos Andes ao caso. Na tenda ao lado havia estátuas, madeira negra esguiamente padronizada. África. Nem parei, àquela altura já nada me servia e doze euros hoje em dia já não compram quase nada, à mão meia dúzia de pensamentos em textura de linho garrido, cores e cores e quase mais nada, uma vez ou outra um capuz que poderá dar jeito quando há que desligar do mundo, procurar a frescura, levitar, o sonho alvoroçado, a pergunta de porquê ele acontecer quando estamos sozinhos, todos tão longe do green e com uma bonita camisa andina na mão. Foda-se.

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