sexta-feira, 25 de maio de 2007

Semana Africana em Santarém*

África

"Quando ontem a Milly me telefonou a recordar-me o compromisso de, hoje, ler umas palavras sobre nós e África, estremeci.

Primeiro porque nada tinha alinhavado pois esquecera-me completamente. Depois, enquanto mentalmente ia coleccionando imagens do álbum e pensando em como me ia desenrascar, os olhos encheram-se de cores, vi-me e li-me como nos calções e boné – obrigatório até eu perder os suficientes, vá-se lá saber porquê!..., a pasta escolar debaixo da árvore e de bruços em volta dos berlindes, os carrinhos com um botão colado com chuinga, deslizando invencíveis na borda do passeio. Das mangas roubadas, do tilintar das pedras que caíam nos telhados dos vizinhos, às vezes até no do dono da mangueira e do correr pelos caminhos estreitos, labirintos de areia quente e paredes em caniço que davam para largos onde havia uma cantina que vendia gelo-doce, à porta mamanas a vender amendoim torrado, amendoim com açúcar, maçarocas assadas.

Provavelmente vendiam mais, mas do feijão e das latinhas de azeite Gallo de um litro não me lembro, eu recordo é o sabor das mangas roubadas, dos jogos do paulito e dos pavilhões ao ar livre que eram os passeios depois de jantar, fabulosos jogos de báskett nas melhores tabelas do mundo, aqueles aros de barril pregados onde desse jeito, os jogos dois-a-dois em que se fintava e metia-se golo no buraco da árvore, as noites quentes em intermináveis conversas sentados nos muros, descobrindo a vida e os seus mistérios, eu penso-me quando penso em África vejo o caniço e o cimento, a cidade. Ao pensar ‘Africa e nós’ eu penso-me em miúdo, nela.

Cresci na cidade mais bonita de África, tantos o diziam, e eu que a amei tanto que só hoje o percebo, conheci-lhe sabor limitado, quase todo urbano. Amava percorrer aquela cidade na minha motorizada, o lento passear sob as ramadas das acácias e dos jacarandás, o longo ronco do motor em avenidas sem fim, camisa aberta ao vento e a todos os cheiros que ele, pródigo que era, me trouxesse. Cresci em harmonia, infelizes quedas em curvas onde o óleo dos machibombos o induzia, mas o alcatrão era suave, tanto que se derretia quando o sol africano explodia, naquele seu apogeu que tem o fim mais belo do mundo, o pôr-do-sol no sul de África.

Era um momento sagrado do dia, uma intenção que só não se cumpria se uma emergência acontecesse ou a preguiça encontrasse outra desculpa: ao cair da tarde, no jardim fronteiro ao imponente liceu principal da cidade, na zona alta e lá em baixo a baía e o desconhecido no horizonte, mesmo aos pés e no fundo das barreiras o final da baixa da cidade, a Feira – esse local mágico que acontecia uma vez ao ano e onde se enchiam sacos de plástico de sonhos com rodas para meses, se comiam óptimas bifanas à borla, também o muito verde de matas mantidas para futuros jardins, já um lago e barquinhos, namorados de mão dada.

O Sol, àquela hora e visto dali era mágico, havia labaredas nas nuvens e a água tudo reflectia, o círculo de fogo gritando a paleta de emoções de dizer-se África. Éramos sacerdotes dum ritual irrepetível: também com marca de de época, mas a beleza do beijo final do sol à baía e à cidade era uma carícia especial, e a tela só perdia em beleza para as miúdas da cidade.

O mundo ajusta os seus ciclos e o colonial fechou, o longo tabuleiro mundial ajustou peças e, na revoada formada, fugiu-se-me o pôr-do-sol. Sei lá se fui colono estatisticamente, eu que nasci ‘cá’ mas amei crescer ‘lá’!... ‘colonialista’ em termos de definição clássica não fui, fui tão parvo como me apeteceu e tive quantas paixões como as que me lembrei, joguei à bola no caniço antes de saber andar de mota, cresci feliz à beira duma avenida famosa numa ilha de cimento que me deixava mergulhar as sandálias na areia mole, roubar mangas ou comprá-las, espreitar as prostitutas que aguardavam os militares num famoso dancing-bar quase em frente à minha casa, atirar sacos de água aos machibombos pelas portas inexistentes, e certeiros rolinhos de papel, dardos meticulosamente preparados e projectados por tubos de plástico que se arranjavam ‘nas obras’, foi numa cidade africana que os meus papagaios subiram ao céu, impossível esquecê-lo.

Hesito muitas vezes na distinção entre saudosismo e nostalgia, confesso que receio cair no mar morto do primeiro, e interrogo-me sobre a segunda. No meu caso e no de muitos de vós, quando “pensamos África” associámo-la com duas, três décadas atrás, e tanto que esse tempo é.

Nós não somos os mesmos, se fôssemos outra vez miúdos não tínhamos papagaios senão de plástico, e nas praias do Verão. As pessoas têm todas telemóveis para se chatearem continuamente umas às outras. Também lá, ao que ouço. Então porquê África diferente, porque este sorrir que se formou quando, findo o telefonema, comecei a escrever? sabem, disse-o à pouco, e seria poético demais dizer que a diferença está no por-do-Sol: isso é pouco para contar do dormir numa praia, da interminável savana e do cheiro das queimadas, de como um romance de aventuras sabe melhor lido em África, terra mágica e de mistérios.

Por isso acho que tenho direito à saudade de tê-lo visto naquele jardim e ter-me apaixonado pelas suas cores, ter sentido África no ar quente que me deu o oxigénio, e nas chuvadas de balde das primeiras desilusões nos grandes amores. E à nostalgia de mim, também; da felicidade de ter crescido assim, olho África e o meu passado em harmonia, deixo-a invadir-me pacificamente o quotidiano quando o olhar vagueia, moureja por ancoradouro que traga um sorriso ao crispado dos anos, há um suspiro de memória e um salivar pelo cheiro do milho nas brasas, pelo sabor duma manga verde com sal, há o olhar que se perde e nunca mais se encontra, há esta coisa boa de, aos cinquenta e tais, recordar o jogo do paulito e do n’tchuba, aquele das covinhas e das pedrinhas, o capim que bordejava os carreiros que haveriam de conduzir a algum lado, o cheiro da terra húmida após chuvada.

Não sei se lá voltarei, se calhar para aquilo que fazem os elefantes quando abandonam a manada. A vida trás raízes múltiplas, e quando penso num regresso à África onde vivi odeio imaginar-me turista, um tontinho de máquina fotográfica na mão fotografando as memórias, tão vagas que não reconhece tanto como julgava e, não tarda, está a fotografar cinemas fechados e cafés que hoje são lojas de telemóveis, catedrais, a comprar postais ilustrados.

Mas há cá um canto que bule, que volta não volta enrola o pensamento nas mãos e aquece-o, são os momentos em que a herança cultural africana que me deu um bafo em miúdo espreita, tentadora. Estou bem com o meu passado, olho-o com ternura até. Tão igual ao de qualquer outro miúdo, seja em Santarém seja onde for, com a diferença contada, a cor do pôr-do-sol e a avenida com a areia solta ao lado, o bar em frente e os pirolitos e o gelo-doce, o aventurar para fazer quase duzentos quilómetros em areia numa motorizada para ir a uma praia, o dormir ocasional num recanto ouvindo os sons da noite, poderosos no imaginário. Isto que foi mais-valia do meu início consciente, porque não buscá-lo de novo, nas novas realidades, tal como é novo o Outono quando a idade nele nos mergulha.

Obrigado África, pelo que me deste e continuares no meu imaginário"


Santarém, 25/5/2007"
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* no cine-teatro Sá da Bandeira, às 17 horas

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Carlos Gil,
Certamente nao nos conhecemos nem nunca nos vimos (nao me lembro, pelo menos!)mas descobri que fomos colegas no jogo do paulito, no berlinde, nas mangas "palmadas" (por prazer, pq em casa tinha uma enorme mangueira) nos carrinhos com chuinga...! do amendoim torrado a quinhenta e da maçaroca assada a um escudo vendidos pela mamana da esquina... e ao fundo o pregão "amêjoíêêê!"... Tu aí e eu aqui, colegas que sendo-o nunca o fomos, mas com uma memória colectiva do que foi e não é mais... Já nao se joga ao paulito nem ao berlinde, nem "futebol de 2" nos passeios debaixo das acácias, já não há pregão das vendedeiras de ameijoa fresca (quem quiser comprar que vá ao mercado do peixe perto do Triunfo! Mas ainda há maçaroca assada nas esquinas...Pelo menos isso ficou, já que as matas verdes para futuro jardim, frente à Facim se transformaram em matas de prédios de meia duzia de andares. Obrigado meu caro, fizeste-me viajar, hoje dia de Africa, no tempo... Um abraço. JAF

Carlos Gil disse...

JAF, um abraço desde aqui até aí. sem mais...