tirando os amores e umas coisitas de nada quanto a drogas, nunca fui
um radical. acho. nos meus dezoitos e subsequentes naveguei em áreas de extrema-esquerda
e até comunguei da ideologia maoísta. esta fase foi mais no meu período
moçambicano, em que aderi de peito amante e algum pulmão à revolução, crente de
que o tal mundo novo e o homem novo estavam ao nosso alcance: de todos, desta
vez num todos que abrangia mais do que o meu bairro e os meus amigos, a minha
piscina privada de sonhos revolucionários e conspirações imaginárias onde
banhava a sempre insatisfeita rebeldia adolescente. depois desiludi-me e
zarpei, embora tenha andado décadas com um caroço na garganta quando pensava se
tinha agido correcto, ou se, em falas simples, fora cobarde ao refugiar-me numa
segunda nacionalidade e pisgara-me às dificuldades que outros que ficaram enfrentaram.
hoje penso que essa dúvida imatura já se respondeu e arrumou de vez. porém
recordo-me de quase tudo o que vivi. e vi. do processo formativo do
enamoramento, da paixão, e daquela sensação que se foi instalando, qual
doençazinha que ia piorando dia a dia, em como algo ia tão mal no noivado que o
que desejava, dia a dia mais profundamente, era o divórcio. e vim-me embora,
vim conhecer a “minha terra” e por cá fiquei. até gosto.
uma das coisas que me vêm à cabeça, quando penso no tal
processo cumulativo de amuos e arrufos entre mim e o espírito revolucionário de
cariz tão radical como o que se viveu em Moçambique no pós independência, é a
insensibilidade latente com que medidas legislativas excessivas eram olhadas
pelo fervor revolucionário. restrições parvas. censura ideológica. espartilhos
atrás de espartilhos, e eu a pensar nos meus dezoitos e a achar que não era
assim que os queria viver. que os merecia viver. o regresso do medo após duas
mãos cheias de meses de plena liberdade não me caía bem. e, olhando para o
lado, vendo quem conhecia e ouvindo de todos acerca de abusos e de
arbitrariedades, não gostava. mais que temer por mim naquele momento, temia
pelo que seria a vida daí para a frente sob uma canga assim. as medidas revolucionárias sucediam-se e em
muitas delas não lhes via justiça social ou lógica atendível sob qual fosse o prisma que s’as olhasse: desmandos
legislativos insensatos, quando não, suspeitava, prenhes de ódio racial ou duma
xenofobia nacionalista que cheirava a tudo menos ao que sonhara e acreditara se
desejar construir-se no novo país. conseguir-se algo puro, novo, uma folha
branca para se construir sem erros. dessa fase quase nada deu certo, já é dos
livros de História. nos rodapés da memória ficaram as injustiças.
aliço isto a propósito das severas medidas de austeridade
com que nos castigam quase mensalmente. em que se vê quem alguma coisa tem –
nem que esse ter se refira a ser retribuído com um salário digno –, ser espoliado
via taxas e sobretaxas abusivas sobre tudo que mexe e não mexe, em que ser
proprietário dum bem relevante, seja um carro ou um imóvel, é vê-lo taxado e sugado como se fôssemos príncipes e não meros usufrutuários de bens de conforto
mediano e de necessidade justificável.
“só perdem os que têm”: esta frase, tantas vezes ouvida nos
meios revolucionários à época e local, era falaciosa, demagoga e
mal-intencionada. não poucas vezes dita além do fervor revolucionário com
ironia maldosa e por pura inveja. soou muito aquando das nacionalizações
generalizadas ao património urbano, em que dum momento para o outro aquilo que
não poucas vezes levou uma vida a adquirir deixou de ser propriedade de quem
labutou arduamente por isso. quando o sonho mais comum, mas tão difícil de
almejar, a casinha, um futuro mais confortável para os filhos, se reduzia a
cinzas via leis que por muito que viessem justificadas como justas e
socialmente necessárias para um futuro melhor e igual para todos, só podiam ser
olhadas como actos de pirataria por quem delas se tornou vítima. e eu
acrescento: por quem as olhava tentando ser isento. e, se a discussão se
estabelecia, lá vinham uns olhos brilhantes de rancor satisfeito exclamar: “só
perdem os que têm!”. esta frase também contribuiu para o meu desamor com o que
se vivia, pois sentia-a mais ou menos comungada mas, principalmente, “perigosa”
de ser contraditada. outra vez? não.
e vem-me tudo isto hoje à memória enquanto leio e ouço, e penso
em situações concretas. algumas próximas, outras que facilmente se adivinham, e
de todas estas migalhas calcula-se o volume da montanha: quem tem qualquer
coisa de seu, quem se achava há meia dúzia de anos atrás com saudáveis
expectativas duma vida dignamente encaminhada, confortável porque conquistada, hoje,
sente tudo isso ameaçado. sente-se agredido. vilipendidado, até: chamam, encapotadamente ou à
descarada, de ‘rico’ quem nunca assim se sentiu e viveu. talvez o tenha sonhado,
mas nunca usufruiu do que se supõe serem benesses de tal degrau social. porém o
Estado assim o trata, assim o taxa. ganhas razoavelmente? então dá cá mais.
tens uma casinha tua (embora o teu Banco sorria ao teu sentimento de posse)?
então dá cá mais. o carro? nem que não tenhas dinheiro para lhe pôr gasolina e já cresçam ervas ao pé dos pneus, dá cá na
mesma. e sempre mais, mais, mais. pura rapina social a que só uma minoria escapa
pois, felizmente, este é um país onde a classe média já é maioritária. amanhã
não sabemos, além de que naturalmente a média será obtida mais abaixo.
“só perde quem tem”: a sangria social como ideologia. o
radicalismo ideológico que preside a estes desmandos vem de quadrantes opostos
àqueles que noutros tempos conheci e referi, e agora me serviram de mote. mas “eles”
são os mesmos. o mesmo olhar. e a mesma insensatez. desta vez não tenho outra
nacionalidade na algibeira para me socorrer: fico, não fujo. não tenho refúgio.
quarenta anos depois estou assim. o mesmo incómodo. a mesma vontade de zarpar. mas, agora, irrealizável.
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