«Naquele tempo, eu andava obsecado pelos deuses. Não me refiro a Deus, o Deus com letra maiúscula, mas aos deuses em geral. Ou com a ideia de divindade, ou seja, a possibilidade da existência de deuses. Era um apaixonado pela leitura e conhecia razoavelmente os mitos gregos, embora fosse difícil seguir a pista dos personagens que os habitam, porque se metamorfoseavam com frequência e as suas aventuras eram múltiplas e variadas. Tinha deles uma imagem necessariamente estilizada - figuras grandes, quase nuas, todos eles músculos, tendões e troncos semelhantes a barris - inspirados nos grandes mestres do Renascimento Italiano, Miguel Ângelo sobretudo, cujas pinturas devo ter visto reproduzidas num livro ou numa revista, eu que andava sempre à cata de corpos nus. Foram sem dúvida as proezas e os feitos eróticos destes seres celestiais que mais exarcebaram as minhas fantasias. A ideia de toda aquela carne tensa e arrepiadamente nua, sem outras roupagens para além das pregas marmóreas de uma túnica ou de uma faixa de gaze colocada de modo fortuito (...), satisfazia a minha imaginação inexperiente [mas] já exarcebada com devaneios e transgressões amorosas (...). Tinha uma noção escassa dos pormenores destas escaramuças que se desenrolavam sob a poalha dourada da Grécia. Imaginava o latejar e o estremecimento de coxas bronzeadas que, ao render-se, deixam a descoberto a carne pálida dos quadris e ouvia os gemidos de êxtase e de doce aflição. Todavia, a mecânica do acto estava para além do meu entendimento.
(...)
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O amor entre gente crescida. Era estranho imaginá-los, tentar imaginá-los, debatendo-se nos seus leitos olímpicos na escuridão da noite, com as estrelas como únicos espectadores, a arfarem e a abraçarem-se, a trocarem carícias ofegantes, a gritarem de prazer como se estivessem a sofrer. Como justificavam esses feitos nocturnos perante os seus seres diurnos? Porque é que não se envergonhavam? (...) É verdade, eu era assim em rapaz. Ou melhor dizendo, ainda subsiste em mim uma parte desse rapaz que era então. Por outras palavras, um jovem [rude] com uma mente perversa. Como se houvesse outras. Nunca crescemos. Seja como for, eu nunca cresci.»
in "O Mar", John Banville, Edições ASA, 2006
como me entendes, caro! uma cambada, uma cambada! e como me descreves tão bem... ;-)
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