terça-feira, 22 de maio de 2012

"paredes": autofagia produtiva


estou aqui sentado entre parapeitos, numa janela a fácil complexidade do Mahjong, onde saltar de nível não requer argúcia ou golpes de sorte especiais, mas somente atenção e paciência de chinês. joga-se, sabendo que se ganha sempre no fim. 

os telhados geometricamente simples, as cores em equilíbrio contrastante, é mais que uma parede nova quando se nos pendura no silêncio contemplativo um Maluda, e pensamos que além da urgência de voltar a olhar o quotidiano muito depende do olhar: se Goya olhasse o Tejo ele nunca mais nos seria igual (esta metáfora é muito ampla, aviso).

noutra janela está pousado o jornal, dobrado, à espera do medo. fustigo-o com o colectivo. e procuro a "charge" nos casarios distantes que ligue o interruptor quando saltar para o parapeito seguinte. posso chamar-lhe informação, aprovisionamento, cultura ou lúdico, mas por aquele rectângulo horizontal (os jornais não são assim!) não entra nenhuma parede nova e choca-nos a urgência em pintar as nossas: o sarro dos dias, o poeta dixit, é tão espesso como um quadro de Goya.

então retorno a Maluda, revisito casarios sob o seu olhar luminoso e que desmonto com a destreza do treino desse jogo. par a par, semelhança a semelhança, botão a botão, os dedos vão deslizando pelas ideias, as rugosidades dos parapeitos onde nos apoiamos, esta familiaridade vácua do nosso corpo cerebral. mais cor. mais existência. abundância de janelas, um desvario de identidades. neste jogo a corrida e o medo vão lado a lado, pedras que se destapam e revelam novas, mais, a paridade mantêm-se escondida com o rabo de fora mas são tão intermináveis como esta Cronologia que construímos, tic-tac de solidões não medicadas, murais pincelados a granel por um explosivo Gulley Jimson fugitivo das páginas de Joyce Cary, e tão raramente telas que enlouqueçam uma criteriosa sala de leilões, como tu e eu nos julgamos. Game Over tanta vez, esgota-se o olhar e o casario é só o casario e as paredes lá continuam à espera de Prometeu que um dia as pinte.

se se clicar na imagem vê-se em melhor pormenor: saltei uma janela, um parapeito. o Diário nunca está completo, há regiões tão autónomas que, nelas, os botões apertam-se em vez de se desapertarem aos pares. eu chamo-lhe o Passado. passado é tudo que se modificou. pode estar presente, sentar-se como habitualmente nos parapeitos quando fazemos nascer o dia, mas resvalou para o lado das ausências presentes e senta-se mais no que vemos com a curiosidade duma visita museológica pela anatomia geral da nossa própria existência, que na atenção que nos merece uma reparação doméstica, um dilema por resolver, uma janela que soube compreender que o vento e a chuva são tanto tormentos como a é a aflição que nos explode no íntimo perante a tremenda beleza, agressivamente triste, ameaçadora de qualquer horizonte primaverilmente são, do mestre espanhol. há um vácuo latente, e os vácuos em parapeitos aumentam perigosamente as distâncias entre zonas de conforto e a cronologia necrófaga que é reler e reler e reler passados. então Maluda.


recordo-me duma entrevista de Luís Fernando Veríssimo, ao Carlos Magno da TSF, onde desvalorizava este escrever acerca do nada. dizia que era chão que já não dava uvas. na altura, em trânsito motorizado, quase parei o carro envergonhado: eu, réu, me confesso! mas, abrindo as portadas (as pedras de Mahjong sobrepostas com o rabo de fora; os tais botões do que nos tapa o peito) e olhando minuciosamente um horizonte que nunca se esgota enquanto houver resmas de folhas A4 brilhantes (Vila-Matas; foi ele que se saiu com esta), pergunto-me se o brasileiro com quem mais gostava de passar uma tarde na cavaqueira não foi ligeiro na sua apreciação depreciativa. se, sentando-nos nos parapeitos não se ilude a vertigem da monotonia, não se esconjura o sarro dos dias no fundo dos copos que vislumbrou e apoquentou o poeta, se não nos refazemos em janelas sobrepostas sobre o vilipêndio da vacuidade do nada. 

não vou pintar paredes mas vou arranjar a porta do armário da cozinha. gostei muito deste bocadinho, levo um sorriso que no início não existia: sou um sacana e pêras, e puta que pariu o cérebro deprimente do Goya: abro as janelas e salto parapeitos com o medo residente de que algum horizonte se acabe e sobrem manchas e manchas nas paredes, mas

haja dedos e folhas brilhantes e nunca (nunca!) terminará este gosto egocêntrico de repintar o espelho de feira, ora gordo ora magro, ora o casario de sempre mas com um pássaro ou um avião voando, meus papagaios de todos os diários.

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