estou aqui sentado entre parapeitos, numa janela a fácil
complexidade do Mahjong, onde saltar de nível não requer argúcia ou golpes de
sorte especiais, mas somente atenção e paciência de chinês. joga-se, sabendo
que se ganha sempre no fim.
os telhados geometricamente simples, as cores em equilíbrio
contrastante, é mais que uma parede nova quando se nos pendura no silêncio
contemplativo um Maluda, e pensamos que além da urgência de voltar a olhar o
quotidiano muito depende do olhar: se Goya olhasse o Tejo ele nunca mais nos
seria igual (esta metáfora é muito ampla, aviso).
noutra janela está pousado o jornal, dobrado, à espera do
medo. fustigo-o com o colectivo. e procuro a "charge" nos casarios distantes que
ligue o interruptor quando saltar para o parapeito seguinte. posso chamar-lhe
informação, aprovisionamento, cultura ou lúdico, mas por aquele rectângulo
horizontal (os jornais não são assim!) não entra nenhuma parede nova e
choca-nos a urgência em pintar as nossas: o sarro dos dias, o poeta dixit, é
tão espesso como um quadro de Goya.
então retorno a Maluda, revisito casarios sob o seu olhar
luminoso e que desmonto com a destreza do treino desse jogo. par a par,
semelhança a semelhança, botão a botão, os dedos vão deslizando pelas ideias, as
rugosidades dos parapeitos onde nos apoiamos, esta familiaridade vácua do nosso
corpo cerebral. mais cor. mais existência. abundância de janelas, um desvario
de identidades. neste jogo a corrida e o medo vão lado a lado, pedras que se
destapam e revelam novas, mais, a paridade mantêm-se escondida com o rabo de
fora mas são tão intermináveis como esta Cronologia que construímos, tic-tac de
solidões não medicadas, murais pincelados a granel por um explosivo Gulley
Jimson fugitivo das páginas de Joyce Cary, e tão raramente telas que
enlouqueçam uma criteriosa sala de leilões, como tu e eu nos julgamos. Game
Over tanta vez, esgota-se o olhar e o casario é só o casario e as paredes lá
continuam à espera de Prometeu que um dia as pinte.
se se clicar na imagem vê-se em melhor pormenor: saltei uma
janela, um parapeito. o Diário nunca está completo, há regiões tão autónomas
que, nelas, os botões apertam-se em vez de se desapertarem aos pares. eu
chamo-lhe o Passado. passado é tudo que se modificou. pode estar presente,
sentar-se como habitualmente nos parapeitos quando fazemos nascer o dia, mas
resvalou para o lado das ausências presentes e senta-se mais no que vemos com a
curiosidade duma visita museológica pela anatomia geral da nossa própria
existência, que na atenção que nos merece uma reparação doméstica, um dilema
por resolver, uma janela que soube compreender que o vento e a chuva são tanto
tormentos como a é a aflição que nos explode no íntimo perante a tremenda
beleza, agressivamente triste, ameaçadora de qualquer horizonte primaverilmente
são, do mestre espanhol. há um vácuo latente, e os vácuos em parapeitos
aumentam perigosamente as distâncias entre zonas de conforto e a cronologia
necrófaga que é reler e reler e reler passados. então Maluda.
recordo-me duma entrevista de Luís Fernando Veríssimo, ao Carlos Magno da TSF, onde desvalorizava este escrever acerca do nada. dizia que era chão que já não dava uvas. na altura, em trânsito motorizado, quase parei o carro envergonhado: eu, réu, me confesso! mas, abrindo as portadas (as pedras de Mahjong sobrepostas com o rabo de fora; os tais botões do que nos tapa o peito) e olhando minuciosamente um horizonte que nunca se esgota enquanto houver resmas de folhas A4 brilhantes (Vila-Matas; foi ele que se saiu com esta), pergunto-me se o brasileiro com quem mais gostava de passar uma tarde na cavaqueira não foi ligeiro na sua apreciação depreciativa. se, sentando-nos nos parapeitos não se ilude a vertigem da monotonia, não se esconjura o sarro dos dias no fundo dos copos que vislumbrou e apoquentou o poeta, se não nos refazemos em janelas sobrepostas sobre o vilipêndio da vacuidade do nada.
haja dedos e folhas brilhantes e nunca (nunca!) terminará este gosto egocêntrico de repintar o espelho de feira, ora gordo ora magro, ora o casario de sempre mas com um pássaro ou um avião voando, meus papagaios de todos os diários.
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