sexta-feira, 1 de maio de 2009

extractos da vida


(...)

Quando o conde d'Ambrosio o foi buscar, no domingo seguinte, parecia novinho em folha. Libero Parri tinha-lhe puxado o lustro com uma sabedoria à qual não eram estranhos os anos passados a escovar vacas para a exposição anual na feira de gado. O conde comentou com um assobio de admiração, muitas vezes testado nos bordéis de meia Europa. Depois puxou de um saco de cabedal castanho e empurrou-o para Libero Parri.
- Abre.
Libero Parri abriu. Lá dentro estavam óculos, touca de pele, luvas, um lenço colorido e um blusão com uma etiqueta cosida que dizia: D'Ambrosio Parri.
- O que é que isto significa?
- Já ouviste falar em corridas de automóveis?
Libero Parri tinha ouvido falar. Coisas de ricos.
- Preciso de um mecânico para correr comigo. O que me dizes?
Libero Parri engoliu produzindo um ruído estranho.
- Não tenho tempo para isso. Tenho de trabalhar, eu.
- Quarenta liras por dia, mais as despesas e um quarto dos prémios.
- Prémios?
- Em caso de vitória.
- Em caso de vitória.
- Isso.
Depois ambos se viraram instintivamente para a porta, como que chamados por um ruído. Estava tudo silencioso, e a porta escancarada, e a soleira deserta. Ficaram um instante com o olhar ali parado, como que à espera. Ultimo passou pelo vão da porta, sem sequer dar por eles, preocupado em não deixar cair a lenha que segurava nos braços. Tal como tinha aparecido, assim desapareceu.
- Quem é que vai convencer a Florence? - disse Libero Parri.

(...)

- Eu trato da Florence.
Libero Parri desatou a rir.
- Tu não a conheces.
- É uma questão de segundos.
O conde D'Ambrosio esteve com Florence dez minutos, sentado à mesa da cozinha. Explicou-lhe o que eram as corridas, onde se faziam e porquê.
- Não - disse ela.
Então, explicou-lhe o que significava a celebridade no mundo dos negócios. E garantiu-lhe que diante daquela oficina, dentro de meses, passaria a haver fila.
- Não - disse ela.
- Porquê?
- O meu marido é um sonhador. E o senhor também é. Acordem.
Então o conde D'Ambrosio ficou um pouco a pensar. Depois disse:
- Quero contar-lhe uma coisa, Florence. O meu pai era um homem muito rico, muito mais do que eu. Desbaratou quase tudo para ir atrás dum sonho absurdo, algo relacionado com caminhos-de-ferro, um disparate. Gostava de comboios. Quando começou a vender as propriedades eu fui ter com a minha mãe e perguntei-lhe: Porque é que não o deténs? Tinha dezasseis anos. A minha mãe deu-me uma bofetada. Depois disse-me uma frase que agora você, Florence, tem de decorar. Disse-me: se amas alguém que te ama, nunca desmascares os seus sonhos. O maior, e ilógico, és tu.
Sem sequer esperar por uma resposta, despediu-se com grande cortesia e saiu para o quintal. Libero Parri estava a dar marteladas numa capota que tinha encontrado, há uns meses atrás, na berma da estrada para Piàdene. Tencionava fazer uma cobertura para o depósito de lenha.
- Está tudo resolvido - soletrou o conde, esfregando as mãos.
- O que foi que ela disse?
- Disse que não.
- Ah.
- Começamos no próximo domingo. Na Veneza-Bréscia - e começou a dirigir-se para o automóvel.
- Mas se disse que não...
- Disse que não mas pensou que sim - respondeu o conde, de longe.
- E tu como é que sabes?
- Como é que sei?
- Pois.
O conde D'Ambrosio parou. Ficou alguns segundos à procura da resposta. Mas não a encontrava. Virou-se. Deparou com Florence à frente. Só deus sabia como tinha chegado até ali. Falou em voz baixa, para que só ele ouvisse, mas soletrando as palavras. Com doçura.
- O seu pai não desbaratou coisa nenhuma, é um dos homens mais ricos de Itália, e provavelmente nunca ligou a caminhos-de-ferro. Quanto á sua mãe, duvido que alguma vez na vida lhe tivesse dado uma bofetada.
Fez uma breve pausa.
- Admito que a frasesinha sobre os sonhos não é má, mas frases dessas só são verdadeiras nos livros: na vida são falsas. A vida é terrivelmente mais complicada, acredite em mim.
D'Ambrosio esboçou um gesto que queria dizer Acredito.
- Seja como for, o senhor tem razão. Disse que não mas pensava que sim. Não lhe vou dizer porquê. Aliás, quer saber? não o digo sequer a mim própria, que é para ficarmos mais serenos.
D'Ambrosio sorriu.
- Veja se mo traz de volta para casa. Que vençam ou percam não me interessa para nada. Veja só se mo traz de volta para casa. Obrigada.

(...)

"Esta história", Alessandro Baricco, Dom Quixote, 2007

1 comentário:

Anónimo disse...

Estou lendo em tradução do Brasil.

Excelente livro, até agora, e achei seu blog pela referência no texto acima, quando busquei D'Ambrosio Parri.

Parece que temos interesses em comum: livros e carros. Vou me aprofundar em seu blog e já está entre meus preferidos.

Juliano