segunda-feira, 27 de abril de 2009

"Vinte e Quatro", além


(resposta ao desafio da Hipatia, menina malandra que me arranjou este ‘31’, á força situado a ‘24’)

Uma coisa que me irrita é inventar. É que há tanta verdade na ficção, tanto pedaço de nadas para rejuvenescer contando-lhe os pormenores saboreados cor a cor, para quê inventar se a ficção é o jogo da verdade do escritor e do leitor, ambos sorrindo no gozo contado duma inócua bica tomada sob um sol especial, um rabo de vento que alça um vestido e enlouquece as glândulas da imaginação, um cão vadio que monta mil ardis para derrubar um caixote de lixo e – quem sabe? irá consegui-lo, ou não? Toda a ficção é viva enquanto duram as páginas que a viram e lêem. Cresci acreditando nisto, e a seguir contarei do porquê desta asserção.

Provavelmente terei ido trabalhar na manhã. Era um sortudo pois tinha o chamado “horário único” que, se me obrigava a madrugar e a almoçar mais tarde, não me privava de dois lautos pequenos-almoços: o primeiro quando o dia acordava e naqueles balcões madrugadores que o ronco da motorizada descobria na cidade que ajustava o dia, o outro tomado à secretária e a meio da manhã, óptima altura para uma sandes de ovo com mostarda em pão de forma e um sumo ‘Crush’, a que se seguia um charro fumado na varanda do escritório a meias com o Luís, e a que quase sempre se seguia o olhar reprovador do velho leão que fazia vestes simultâneas de chefe de escritório e “pai” tolerante e reprovador, ele, o Afonso Quadros, que na sua vasta ninhada contava com exemplares tal qual nós. E por isso sabia, e por isso na sua censura havia bondade.

Ou não terei ido trabalhar, que acontecia. Já morava “sozinho”, que após a motorizada paga foi o passo largo dado na ficção de crescer aceleradamente. Morávamos, eu e o Luís, numa ‘flat’ do outro lado da rua do trabalho e o bom do Alberto, o contínuo mais velho e mais cúmplice, a carapinha branca já a raiar de sabedoria e paciência, ambas reflectidas na sua gestão matrimonial de duas esposas: uma na cidade e consigo e cuidando dele e seus filhos, outra no campo e cuidando da machamba e dos outros tantos filhos além dele quando, sempre que podia, contraía doenças que só se podiam curar no aconchego feiticeiro da aldeia natal, bem, o bom do Alberto bem tocava à campainha da nossa ‘flat’ quando as luzes do escritório se começavam a acender «Carlos! Luís! tá na hora pá!» que, às vezes, algumas vezes, que isto de nos escrevermos dá prerrogativas e nelas está a caprichosa benevolência, algumas vezes o eco era o resmungo e o regresso aos lençóis ainda mal quentes que a noite fora extensa.

Cumpridas como calhou e se pôde as obrigações e os pequenos-almoços, o dia nasce e, conto-vos, os dias africanos têm além da fama o direito ao gozo. Um passeio avenidado entre áleas de acácias e jacarandás em que o ronron da motorizada fazia os meus olhos tão brilhantes como seriam os do Giacomo Agostini se ele, coitado, soubesse dos cantos e curvas da minha cidade como eu que a percorria de lés a lés descobrindo-lhe sempre novos olhares, o deslizar lento pelas fachadas dos cinemas adivinhando qual das matinés tinha o cartaz mais sedutor, ou a sombra que lhe exigia entre o arvoredo nas zonas solitárias da longa praia da marginal, enquanto eu, seu cavaleiro e Agostini ficcionado, redescobria o agrado da areia quente e as águas tépidas, um charro e um céu imensos, às vezes um livro ou por minha conta e risco apenas sonhar.

Era a tarde, o prazer duma visita a um amigo, e mais um charro, dois, três, tantos que no enigmático Vinte e Quatro terão acontecido ou não. Porque calhava ser-se ferreiro com espeto de pau e, nessas tardes, nesse sol que derretia o alcatrão e em que os peitos inalavam “la joie de vivre” mais depressa que o francês o escreveu, por vezes dava-se conta tarde demais que nem eu, nem nós, nem nos ‘grupos’ que mais avizinhávamos havia reservas suficientes para garantir uma noitada e outra e outra, que já se sabe que além dos charros pequeno-almoçados as tardes eram quentes e as noites intermináveis. Talvez, a 24, tivesse combinado um plano, urdido uma trama, planeado uma incursão aos campos distantes, e digo distantes que a cidade era longa e sempre me considerei seu residente, animal doméstico e só bravio quando, quase sempre com as estrelas olhando-me quais olhos vigilantes, tomava os caminhos secretos que abasteciam os sonhos duma geração, lá e então.

Talvez, é provável que na tarde de ‘24’ qualquer assim tenha acontecido, ou não. É, por vezes nada acontece e a esperança fica-se por uma esplanada, o tal rabo de vento ou os esforços do cão vadio e só isso o olhar regista e a mente agiganta na constante reciclagem do quotidiano, essas ficções de realidades. Talvez tenha suspirado por amor pois ainda hoje o faço, noutro hemisfério e duas revoluções depois: o meu céu é o mesmo e só o seu azul se avivou quando subi ao outro lado do mundo. Já as areias escasseiam e são menos calorosas, já a motorizada só ronca quando me sento e olho saudades.

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No dia seguinte soube que estalou uma Revolução na “metrópole” e ainda não percebera quanto esta nova "ficção" iria alterar a minha visão do meu mundo, que tal fumo longínquo anunciava erupções várias no vulcão colonial em que ficcionalmente vivia, mal dele sabendo. Para quê inventar se a meus olhos foi tudo assim, candura e irreverência, cegueira e deslumbre? Uma cúpula de ficção e “joie de vivre” que estalou de gretada, um crescer ficcionado em prazeres mil, tão reais qu’a sua ficção relatada é tão inesgotável como as salinas que tingem as folhas que a contam?


(imagem da praia da Costa do Sol gamada aqui. thanks)

6 comentários:

Anónimo disse...

fazes-me chorar sempre que escreves sobre lá.
beijo para ti.
Guida

Zé Paulo Gouvêa Lemos disse...

Carlos,

Este teu texto deveria receber uma moldura.

Abraço

ZP

IO disse...

Pois é, pá, tu ainda ontem me dizias que não tinhas parado de escrever e eu é que só hoje cá vim comover-me com a qualidade da tua escrita.
Um beijo, querido 'papillon',
muf'

Anónimo disse...

Papillon, que rico papillon...também tive ocasião de te dizer pessoalmente que adorei.
beijinhos Carlos. Elsa

Hipatia disse...

Gosto das histórias simples das vidas banais, Carlos. Nunca são realmente sem interesse e é dessas que se faz o nosso quotidiano e os principais farrapos que vamos costurando e descosturando na memória. Os acontecimentos extraordinários nunca são a regra; qualquer acto nosso excepcional é isso mesmo: um acontecimento fora da normalidade. Ora, a vida é feita de coisas muito pequenas a que demasiadas vezes não damos o devido valor, como amigos antigos que refrescamos em pensamentos e caras e vozes em que, às tantas, não pensávamos há demasiado tempo. Ou esses pequenos-almoços duplos que já não voltam; ou as voltas que a vida deu. No entretanto, o 25 vai transformando-se cada vez mais numa interjeição de uma realidade povoada de 24s e de 31s. Mas, se bem virmos as coisas, isso nem é assim tão mau :)

Tareca disse...

Tu escreve bonito mangusso,
arrepiei... eta sensibilidade !

uma fã incondicional ;)