quarta-feira, 22 de abril de 2009

As putas não beijam

Ao princípio foram os verbos conjugados em minúcias, vestes, falas, os detalhes da dialéctica em festa na oratória pujante que preenche de luz o silêncio das noites sem lógica. O delírio da construção dos pormenores levados pela imaginação até aos olhares, os gestos, à jarra sobre uma mesa, ao movimento das ondas e tudo o mais que um pintor leva ao quadro enquanto as cores o chamarem. Tudo. A fantasia apoderando-se fracção a fracção da noite, todas as noites. Prendinhas do céu. E cresceu e iluminou-a queimando-a, ardendo-lhe o corpo, carne e nervo. Veio a erecção. Quase igual àquela na ponta do areal das ilusões onde, finda a cerimónia ritual, fizera do amor verbo pleno e verdadeiro.

As chamas quando se levantam são inconstantes e traidoras. Foi longe, muito a oriente, que lhe viu o primeiro fumo. No delta dos prazeres, de sua gentileza arquipélago das Quirimbas. Um rolo de fumo trepando além da noite e dos fusos e incendiando o presente. Fogo. A carne dói e o nervo grita quando as chamas saltam da noite e reclamam-nos seu sacrifício, seu combustível. Lá, no arquipélago e na cerimónia não era assim mas foi assim que chegaram os fumos inquietos que nublaram o escrito, o quadro do pintor e a noite. Os pormenores tornaram-se a realidade. E não se viam os caranguejos fugindo pelas areias a caminho do mar, ou a jarra que ofereceu as flores que vestira e despira. Só as chamas o abraçavam.

O fogo na noite é negro e foi na escuridão que rasou a sombra, mas não beijou.



imagem: "O Grito", Munch; algures da net

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