quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Milos Forman no Salão Ritz


O local? algures entre a Praça da Alegria e o Parque Mayer. Recordo-me da larga escadaria frontal com os degraus forrados nem tapete vermelho gasto por gerações de avós a netos de pé leve e corações ardentes, muitas madeiras em talha dourada e os inevitáveis espelhos com as manchas de patina reflectindo o último passar de mão pelos cabelos antes da cortina se abrir e penetrar no semi escuro que aconchega nas mesas espumante barato e whisky rasca. Ao fundo e como cenário, o palco onde a orquestra hesita nota a nota entre morrerem no seu posto e de instrumento em riste ou, se já mortos como os alvos casacos encimados por lacinhos dez centímetros abaixo de rostos dum século indiciam, apenas repetem os acordes em lentos movimentos para contrariarem o rictus mortis que aparentam e assim enganarem algum médico-legista que tenha lá caído para dar um pé de dança.

Soam slows continuamente. As Damas, que em fugazes momentos duma luz indiscreta dum isqueiro fazem suspeitar serem irmãs, filhas mais velhas e uma ou outra até mães da esforçada orquestra que simula em arremedos de acordes que ainda vive e não morreu, elas, as Belas, antecedem em maquilhagem e profundidade de olhar escolas de cinema neo-realistas que Cannes ainda não sonhava premiar, e enquanto sinto o osso da perna da que o destino me sentara ao lado cravar-se na minha, a mão gélida torneando-me o pescoço e a voz que se quereria ciciante murmurar-me ao ouvido em pigarros de catarro de Três-Vintes: "filho, mandas vir outro 'Magos' e depois dançamos?", eu sinto-me não filho mas neto daquele olhar 'femme fatale' de décadas de avanço, que me leva, um, a duma golada beber a minha zurrapa e pedir outra, dois, a pedir ao solícito outra bebida para "a menina" e anuir-lhe que sim, a cabeça para cima e para baixo para se libertar do toque da pele fria que lhe cobre os ossos - sentia-os da falange à falangeta. Se ela e a sua insistente perna me permitissem evadir-me sentir-me-ia outro Milos Forman a filmar o baile dos bombeiros da associação do bairro.

Mas não. É um salão de baile feito casa de alterne, se o alemão ainda não me engana é o velho Salão Ritz e falo do início da década de oitenta do finado. Contar como lá caí era ignorar a música que soava, lenta, repetitiva, esforçada, e seria um desrespeito à estória. Por isso nada de miudezas. Com as goelas e o estômago a arder pela mistela de Sacavém deixei-me conduzir pela mão para a pista onde as luzes baças deixavam ver outros figurantes do sketch surrealista. Bailavam, a ideia era essa e a orquestra sobrevivia para isso e cria em mim que os outros, como eu, sentíamos o dever instintivo de bailar, bailar sempre, porque se a pista se esvaziasse um a um os casacos brancos com lacinhos pretos caíam como folhas fora de prazo tantos os Outonos que já deviam à tumba: sobreviviam porque tocavam, e tocavam para que se bailasse. Ela, a Bela? algo cruzado e esforçado entre a avó anoxérica dum futuro 'Família Adams' e uma vamp fora d'época - havia fascínio no momento que sentia-o como único: desde que subira a escadaria iluminada pelo vetusto lustre e pelo vermelho e ouro da decoração que os gastos espelhos me diziam, mesmo antes da cortina se abrir e penetrar em cena, sabia que vivia um momento que já não existia, não era nem da minha época nem da cidade que lá fora existia, findo o último degrau da escadaria: uma máquina do tempo teleportara-me para um pedaço de celulóide de cinemateca e bebia-o e inalava-o sequioso, bem ciente do privilégio histórico de ser-me propiciado vivê-lo. Se entre mesas divisasse caras conhecidas por fotos de álbum de família, o meu tio Olívio que nos finais de cinquenta's emigrara para o Brasil ou até o meu pai que, rezam os anais da família, fora galã marivialva na sua época lisboeta, não me surpreenderia por aí além. Pensava-o para mim enquanto a mão lhe torneava a cintura de vespa reformada e aspirava o cheiro da laca e de decilitros de perfume que me envolviam na névoa onde bailava um, dois slows.

Noblesse oblige, ousei teclar solidariamente aos colegas de palco um tímido piano nas costas desnudadas, e hérnia dical a hérnia discal acompanhava o ritmo que o palco de mortos-vivos debitava: não havia ritmo para subir uma oitava nem desci qualquer nota de levantar a plateia muito embora o primeiro balcão se esforçasse e se colasse ao meu peito. A Dama, a pista, o décor belle-époque, as luzes e a orquestra em nada ajudavam a um lá bemol maior que soltasse vidas, baladas e ritmos à partenaire ou à assistência. Bailasse, eis o guião da noite no Salão Lisboa, e o escritor não tivera um momento esfiziante quando mo escrevera - pensava.

A orquestra, coitada, faz uma pausa que eu entendi como a sua deixa para oxigenarem a existência. Foi o meu erro pois não a aproveitei e recolhi à mesa, outro 'Magos' e meio copo de tintura de iodo afogado em gelo e fim de tournée...! O Maestro ressuscita e arrasta no seu milagre colegas, instrumentos, imagine-se que até o som: soa um Tango! Esclareçamo-nos desde já: rock é rock e basta abanar o capacete e fazer olhinhos à garina; slow é slow e não fosse a Dama uma madame que me merecia provecto respeito e sabia como me desenrascar. Um e outro são como andar de bicicleta. Mas um tango... isso já é brevet ou carta de patrão da costa! Um Tango, senhores! Não, não estava no guião. Nunca estivera! Mais e para completar: das profundezas avoengas do olhar da Dama emergiu um brilho que em princípio não cataloguei como perigoso mas que o súbito estremeção do até então plácido esqueleto disse-me que para brincadeira já chegava e agora é que se começava a tratar de coisas sérias. Tão sérias foram que nas suas mãos rodopiei como nunca julguei possível, levei baile, bailarico e, acredito, momentos houve em que até dancei o tango guiado pista afora por uma cicerone mista de alucinada rejuvenescida e indefectível à arte. Nos seus braços e em volta do seu corpo fiz de mim o que não sabia estar ao meu alcance, o seu olhar profundo e magnético cravado no seu infante, ordenando e descodificando o que as suas mãos mimavam às minhas em gestos, puxões e impulsos decididos. No palco os mortos ressuscitavam tal como eu. E as cordas trinavam, os metais assopravam, o piano desenfiavasse e desenrascavasse de teias d'aranha. Foi o momento alto da rodagem e o meu excelsus como bailarino e actor.

Quando o realizador disse "corta!" e tive autorização para voltar à mesa, obviamente bebi um duplo. Depois osculei a minha Dama na mão que não segurava a taça e sem mais palavras que as que os meus olhos diziam, e desci a escadaria do tapete vermelho sem olhar para os espelhos: neles, só podia mesmo era estar reflectido Gene Kelly saltitando nos degraus como se chovesse. E chovera... por isso eu cantava!


ADENDA: corrigi o título: Salão Ritz e não Salão Lisboa. a memória tem 'buracos negros' mas felizmente há amigos que com memórias semelhantes no-lo recordam :)

(originalmente publicado aqui - gracias pela oportunidade dum pé-de-dança Hipatia! e ora com ajustes mínimos. foi mesmo uma dança e pêras, como soe dizer-se..! :) a foto tem os créditos referenciados no blogue e post de estreia, aqui. duplas gracias :)

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