terça-feira, 24 de junho de 2008

Sinfonia matinal

É o mesmo. Maço-me a pensá-lo e repeti-lo pois já não há nada de original, há tanto e tanto tempo. Todos os dias, manhãs, é o mesmo sobe e desce do peso dos pecadilhos que se acumulam na maçã-de-adão e contraem-na, obrigam a engolir em seco e o rombo do aparo arranha-me e asfixia o começo destes dias que, de tão longos, nascem já como ensaio arraçado de pena de rigor perpétuo e mirram o peito, e trago as manhãs sem a golfada que o deveria encher e abrir um sorrir à luz. Eu ouço-o, o sibilar, e talvez possa escrever que mais o ouvem pois não são meus todos os olhos que comigo e o meu arfar se cruzam. Por isso fica exarado que “ouve-se” é o silvar lento, doentio, vindo do fundo carnal e sanguíneo onde coloquei a bolsa marsupial da ilusão que amamentei e a que fiz festas e mimos, hoje o tal ciciar que corre os dias sem encontrar a porta que se abre e diga, cara séria ou à escolha pois o importante é a doença e a possível cura: sim, aqui é o sanatório e desse mal há cura, ou sussurre: aqui fazem-se abortos a fetos malignos, entre suavemente por favor.

Em protocolar forma de exarado porque esta é a acta da manhã, ditada pela mesma placenta que alimentou gota a gota, dia a dia, erro a erro, o estado actual da arte. Dito assim para ser elegante no contá-lo entre dois soluços do tal sobe e desce e é tão persistente, duradouro, que vai desde o agora até tudo se apagar e adormecer. As manhãs, que mais as tardes acumulam-se e fazem a soma que, uma delas ou uma noite, fechará a acta em cúmulo jurídico e muita golfada de ar fresco será precisa para redigir recurso que, para não ter a vitalidade encardida e a caneta balouçar duma trave, penderá de ser-se ou não tão inventivo como se foi ao construir os capítulos do libelo acusatório, enredo e folhas meias do romance que trago no bolso e há por fechar. Depois deixá-lo seguir o seu rumo tipográfico e, seja com capa dura ou com capa mole, o público juiz lê-lo-á e será tolerante com o neófito, ou enviá-lo-á para a reciclagem, lamentando a árvore abatida e tanto euro mal gasto. Ser novamente sonhador de cúmulos eternamente brancos que sem grande esforço imaginei, imagino ou imaginarei palácios flutuantes, daqueles de contos de encantar. Sem acreditar que o tempo rola e as estações sucedem-se acinzentando-os, e a cara sorridente que me recorda ver no espelho, um dia – uma manhã, provavelmente - nascerá cheia de acne do pesadelo, e é essa que será a vera, a outra era o mimo, a face da ficção dos palácios com fundações e muralhas assentes em rijas nuvens de ilusão.

Mais o tudo que há e haja por vir antes de adormecer e se repete, ontem, antes, hoje, repisa-se mal abro os olhos, o nada diário do hoje sucede ao do ontem, o nada passado, em hiato de difícil trago de sobe e desce gargantular antes das nuvens abrirem os bojos e inundarem-me com a acidez da chuva entremeada com a derrocada dos caboucos e pedregulhos dos palácios, da crítica à minha escrita, ruína da minha ficção pessoal. O despertar obrigado do silente que fazendo-se cego e surdo a ser coxo de mão e fraco em advérbio, dia a dia vestiu-se de capítulos, embalou por aí fora e hoje, tantas páginas depois, baila as manhãs, tardes e noites na pele do escritor desesperado na busca dum final que lhe feche o romance sem ele tornar-se best-seller indesejado, mutilador, e assim revolve continuamente a mórbida placenta que lhe encheu o tinteiro, o tal que mais tarde vazou e encardiu a estória de folhas tantas a folhas tantas, à procura de pingos sobrantes para linhas que sejam finais e safem o enredo e os heróis e heroínas. Um romance incompleto, algures com capítulos que são como iogurtes com pedaços, trinca-se dá-se estalinhos de língua. Onde há arranques que não envergonha chamar-lhes lindos, quando a adrenalina dos sóis fez luzir o aparo na linha de partida, até a tinta se conspurcar na recta oposta à bancada central e o fôlego faltar antes do ponto da meta final. Quando o contexto era outro e as manhãs também não eram assim. Em amargo placebo reengano-me e aliço que nem tudo se borrou, relembro folhas sobreviventes com linhas que foram passajadas com mão e gosto de costureiro, e dama ou cavalheiro de bom-gosto não terão vergonha em usá-las, lê-las sem trejeito de irritação por ao espelho saírem mal no retrato. Há-as, já não sei é aonde e tenho medo em abrir mais o guarda-fatos para procurá-las dentro de mim.

Acordar-me, interromper de vez o sobe e desce da maça-de-adão ou dar-lhe o sossego dum ritmo que não asfixie. As manhãs tolhem-me, é o início e eu recordo-me de ontem, de antes de ontem e do seu antes. Sempre igual e há tanto tempo que dura. E revive a angústia, ‘spa’ forçado que massaja a face com maus óleos e emagrece onde não devia pois emergem linhas como rugas, onde brota a acne que amordaça o espelho onde, antes, viu-se um sorriso e hoje nem o olho: fecho os olhos quando as mãos em concha lhe atiram o meio litro de água que faz que lava a crosta matinal. Hoje igual a ontem, a monotonia do vácuo, da espera, à espera da palavra que não vem e, chegando, não sei o que me dirá para poder escrevê-la, estendê-la como trigo em eira esperando que o luzir da sua cor sobressaia e alguém olhe o quadro e diga que, não sendo um clássico holandês, tem tons e pinceladas que merecem uma moldura e um prego na parede, sem para tal ter de, sei lá eu das modernas regras de marketing ou de trâmites judiciários para levar tais processos até ao fim, cortar uma orelha ou usar uma corda para alçá-lo à altura dos olhos que olham e, assim rasteirinho, poeirento e sem moldura, não lhe vêem as folhas não infectadas. As tais que las hay mas já não sei onde ficaram.

São assim as manhãs que secam a garganta na espera, o ar carregado de ácaros e outros maus áugures voadores. A tarde será igual, à noite estou grogue do sobe-e-desce e adormeço. Amanhã há mais, há sempre mais um mais que a traça não desfigurou, e eu tenho esperança em ainda dar com ele a tempo de reaprender a tocar*.
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* um dia tive uma viola. algures a memória diz-mo. mas se me releio vejo que esse tempo voou sem que tivesse aprendido mais qu'aquele trecho do "smoke on the water" que todos sabiam tocar. mas é bom recordar que um dia tive uma, como todas pejada de mais sonhos que de tons dedilhados sem ofensa ao instrumento musical (afinal.... será este o 'elo perdido' desta sinfonia matinal?)

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