sábado, 21 de junho de 2008

A porta da nossa casa

Diz-se que na política vale tudo menos tirar olhos. Quando se fala em 'política', habituamo-nos à referência à nacional, a dos nomes sonantes e caras mediáticas, ou à mundial que se acompanha pelo rabo do olho. Mas há a outra, a local, que fora do seu círculo de influência ninguém conhece excepto se rebentar um escândalo que mobilize jornais e televisões, e, internamente, os directamente beneficiados pela boa gestão ou prejudicados pelo seu mau oposto, essa olha-se com interesse episódico e só se lhe abre mais o olho quando o zum-zum chega às conversas de café, mais a sua versão moderna, os e-mails e os blogues – nestes, ao caso esquivo-me aos 'anónimos' que, tratando-se de política, não me merecem mais respeito e atenção que o boateiro que se entretém a, covardemente, disseminar rancores, azias e invejas (sim, estou a ser moderado) em jeito de confidência, e logo a seguir vira a esquina para, na sombra, olhar os ecos e as mazelas que fazem, tanta e tanta vez em inocentes à sua maledicência original. Está-se careca de sabê-lo, aqui, ali e acolá. Mas, dizia, a política local raramente empolga ou, sequer, leva a mais que uma leitura transversal das linhas que os jornais regionais lhe dedicam, se nada de "bombástico" se passar. Enfim, compreende-se que a política nacional provoque um interesse maior no cidadão pois é lá a génese das grandes decisões do dia-a-dia, da forçada contagem de tostões ou da exclamação (rara nos tempos correntes, infelizmente) "ora aí está uma coisa bem decidida, que me alivia 'a crise".
Na 'nacional' já não é surpresa para ninguém o esfaquear pelas costas, o blá blá demagógico e populista, as alianças contranatura ou o umbigismo partidário, o desdizer hoje do convictamente proclamado ontem: o tão citado como preocupante descrédito dos cidadãos pela política passa naturalmente por estes abusos descredibilizantes, e as taxas de abstenção crescentes são obrigatoriamente lidas como protesto mudo para que essa leitura possa ser considerada séria e não passageiro limpar de caspa nas costas, o dissimular de seborreias dum certo couro e da matéria que ele protege. Ora na política 'regional' os tiques desagradáveis a acontecerem agravam-se, primeiro porque os actores são pessoas que connosco se cruzam no dia-a-dia e a alguns até se dá os bons-dias, e não 'fotos' e 'bonecos' conhecidos apenas dos media; outra, porque as suas decisões, quando das tais relevantes ('estruturantes', está na moda) não têm reflexos diluídos na distância dum impresso que se preenche ou se recebe, em queixas ou alegrias que, acontecendo, são fenómeno nacional e não exclusivas da porta da nossa casa. A porta da nossa casa - acabei de encontrar o título da crónica. Porque é disso que se trata. As grandes decisões específicas “de cá” atraem mais atenções porque somos os primeiros beneficiados ou prejudicados.
À porta da nossa casa vai ser instalada uma mega-estrutura presidiária que, mal foi anunciada pelo poder em exercício é alvo de fogo cruzado da oposição, seja ela esquerda, direita ou indecisos (incluindo-se cutelaria de "fogo amigo"). Os pretextos, quiçá alguns legítimos, passam pelo abate de sobreiros (dezenas, centenas ou milhares, recém-plantados ou centenários, já li de tudo e não sei em que acreditar) e que é uma árvore protegida legalmente, a inevitável e considerada irreparável perda da pacatez diária das duas aldeias mais próximas da futura cadeia (duvido que se ouvissem protestos se um empresário –louco- para lá anunciasse a construção dum centro comercial destes modernaços, hambúrgueres et al), e, finalmente, a segurança das nossas vidinhas face ao possível contágio imanente de tão sinistra construção. É nesta que me vou centrar pois afinal é ela, a segurança e o medo de perdê-la, que me trouxe ao papel.
Ao que por aí leio, o receio da insegurança tem assentado em dois aspectos: que os cativos dêem em fugir e os guardas que vão em seu alcance dêem em atirar em tudo o que mexe e não mexe, decorrendo não se poder dormir uma soneca descansado à sombra dum chaparro pelo risco do pijama poder ser confundido com a farda dos irmãos Metralha e levar-se chumbada da grossa, e até – eis aqui o cerne, a ‘chicha’ da preocupação – as previsíveis visitas aos reclusos, que aos fins-de-semana por certo facilmente ultrapassarão a fasquia do milhar, serem mais que famelga e amigos dos ditos e mais seus gémeos de más atitudes e reprováveis procedimentos, apenas por falhas policiais e judiciárias ainda em liberdade. Entra-se abertamente na xenofobia quando, em concreto, li termos como ‘ciganada’, dada como pesadelo inevitável que se apoderará de casas, terras e bens aquando das visitas a familiares detidos.
Entre todos os males previstos com a chegada da presidiária, o que me colhe mais simpatia é a perda do sossego campesino – embora a juventude ‘se raspe’ para as cidades assim que surja oportunidade -, levanta-me dúvidas o abate de sobreiros, quer pela dimensão que pelo que se percebe ainda ninguém conhece ao certo e pela viabilidade da sua substituição case de trate de árvores jovens – lá, na Herdade dos Gagos, o que não falta é mais área para florestar -, e o que me assusta é a insegurança, mas ao contrário dos ventos mal-cheirosos propalados e de que atrás deixei um ligeiro ‘smell’, pois, se a ‘segurança’ e ‘paz’ em que até agora temos vivido sem a existência da penitenciária à porta das nossas casas está assente em vizinhança com esta forma de olhar e temer o mundo, sinto-me mal avizinhado. E não o sabia: ficou a descoberto com a histeria que às vezes a política veste, ignorando irresponsavelmente que o seu eco pode acordar sentimentos menos gratos e louváveis que o amor à natureza, a exemplo o temor e ódio ao nosso semelhante que seja um nadinha diferente – não é preciso ser verde e ter antenas, basta ser cigano, ou àqueles que louvavelmente visitam um familiar ou amigo detido com a mesma intenção – e porque não compaixão? – com que se o visita se ele estiver num hospital e não na cadeia.
É isto que me alarma e que não pude calar: à porta da nossa casa habitam seres com duas caras, conforme seja a do interlocutor: és da terra e confio assim-assim, és de fora e mantém-te longe que ai Jesus ainda me roubas ou matas. Pior ainda se ele tiver tez ou pronúncia diferentes da sua. E interrogo-me: este chinfrim político – e a procissão ainda não saiu do adro - que nasce com núcleo duro em volta duns chaparros mas onde o tema da ‘insegurança’ já aflora nas franjas, será e terá igual vozeirão para erradicar estes sentimentos e medos que ele, involuntariamente mas ‘ele, chinfrim’, despertou? Oxalá que sim. Política responsável passa obrigatoriamente por aí, pelo esclarecimento sem tibiezas das dúvidas e das razões, também pelo firme apagar à nascença de fogos que incendiou, acredito que involuntariamente. A ver vamos. Afinal a maior verdade disto tudo está no parágrafo anterior: a procissão ainda não saiu do adro, e muito tem o andor de jornadear: é preciso é ser bem transportado e acompanhado.
Não termino sem declaração de interesses: haja acto grave impensado ou grande carga de azar na vida, quer na minha quer na tua, leitor, e qualquer um de nós pode ser hóspede contra vontade da dita: a nota optimista é que, cá perto, fica a vida facilitada para as ‘visitas conjugais’. et voilá...

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