quinta-feira, 7 de junho de 2007

os capítulos morrem de pé


é-se egoísta quando o calor das brasas do borralho faz frieiras, dores que a ânsia de confortos induz quando o coração responde desvairado ao apelo por calor. isso entendo e assim entendo-te quando o teu silêncio me pergunta se chego a pensar em ti, do que desejas e precisas, e eu percebo que as minhas cartas são o teu recreio, não a realidade de após tocar a campainha e guardarem-se os brinquedos, a bola num canto junto ao muro e no chão de cimento o arco imóvel - qu'a cintura esguiou-se e cresceu, engordamos nas necessidades e hoje somos gourmets nos petiscos, é-se egoísta quando se insiste em alíneas da ementa que têm ao lado a cruz terrível do produto esgotado, as dietas necessárias quando há é que diminuir o colesterol que entope as veias do sobreviver. mas nesta última "carta à Musa" vou falar-te noutras coisas, literárias e terríveis:

na pág. 640 do último Crichton canibais ecologistas da polinésia comem Bradley, vivo, a dar conta das facas cortando-o até tudo se apagar. terrível, página e meia que impressiona mais que mil em apologia de exercícios intelectuais para saciar ideologias mal resolvidas. Lecter enquanto jovem (agora Harris, Thomas), fez uma espetada com as bochechas de Dortlich, equilibrada com trufas que estavam a cem francos nos locais de culto de Paris e ele apanha do chão de bosque letão, em volta do pavilhão de caça onde Grutas e os outros comeram a sua irmã pequenina, Mischa. há guerra na literatura. há quem escreva 'terror' com as letras todas em bold e isso vende, consome-se em milhões e milhões, saliva-se por best sellers e encontra-se o choque térmico dum nó do estômago, o frio que se instala e, em comparação enquanto o rosto se crispa mas os olhos não despegam, suaviza o quotidiano quando não se lê a baba de quem escreve, mais repelente que o espelho que nunca olhamos. e, pior porque se fala de livros e isso merece mais respeito que o àqueles que os escreveram, renova-se o compromisso de leitura e há manchas do nosso sangue nas estantes que crescem, às vezes tenho medo de me ler lendo, nem todas as lombadas me merecem olhares indiferentes ou sorrisos de prazer, eu estou escondido em tantas e tantas e escondo-me disso e de mim na secção das puzias e poesias, delicatessen onde te encontrei e faço-te esta gulosa corte.

eu engano-me e sirvo-me escrevendo "a Inês", imortal e renovada senhora das mais românticas ilusões, mães de todas as outras e se a filharada é pequena... às talhadas, aos pedaços, canibal de mim mesmo. sou pior que eles: não me chega a carne inocente da personagem, necrófilo e autofágico lúdico acrescento-lhe a minha, de babete e em beijos e lambidelas amacio-a colada à dela, musa Inês, ferro-lhe dentes roubados e engordo comendo os bocados de mim que mais detesto. sou o meu hit e darei um banquete público quando servir o umbigo, adornado com camarões de promoção fritos e vinho de garrafeira falida, qu'o provarei todo antes das visitas entrarem e verem como quase todo azedou pelas más rolhas que deixaram entrar o ar da realidade. foge de mim, eu não presto.

seduzi-te nas minhas páginas, disse-te todas as palavras de encantar de que me lembrei. houve momentos bonitos, sei. Inês foi rainha e não foi só por um dia, foi uma glória a sua deificação e foi justa, merecida à musa e ao escritor. crescemos juntos, foi lindo o jantar às velas de Carlos-Pedro e a sua Inês. com flores, vendidas num qualquer restaurante do Cais do Sodré por um marroquino com um colete cheio de bolsos de maravilhas a pataco, flores com luzes e rosas de que escolhi duas margaridas e pu-las no teu regaço. tchins-tchins íntimos a que a saudade não será nunca indiferente, mais naquela manhã em que me levantarei antes do dia nascer e irei ver o verde dos campos àquela neblina das primeiras luzes da realidade onde os castelos se desintegram, as românticas muralhas e os altivos torreões, engalanados, agora celas de prisão conquistada com pleno mérito, em pior alternativa muros caiados do cemitério onde jazem as palavras bonitas, as loas, as estantes das ilusões onde lado a lado com a poesia e a metafísica há sempre lugar para um novo livro com veias abertas, a páginas tantas o canibalismo do autor e da personagem, a confusão de identidades onde as belas muralhas não costumam resistir e ruem, nasce a tristeza e seca a flor. crescemos juntos, sobrevive tu enquanto preparo esta espetada de mim, o truque da receita vai além do pau de loureiro e do marisco, ervas finas, ponho-me em saldo e corto lascas da minha melhor chicha, os lábios que te beijaram e os dedos que te escreveram, 'inventaram' - eis o melhor naco, pièce de résistance aos esfomeados da literatura quando esgotadas as palavras belas do enamoramento, Inês abandonada e deixada à vossa mercê por um escritor canalha.

As melhores paixões literárias são sempre as que estão por vir, ainda nem suspeitadas quanto mais delas escritas os primeiros gatafunhos: Inês é eterna para quem acredita em fábulas com musas e outros seres fantásticos, Tolkien dum sorvo e Roberto A. Heinlein, 5 Hugo, noutro. digo dos Hugo porque num universo de tarados ganhar uma medalha de mérito é obra tão difícil como fazer versos que mereçam um prémio de Poesia, ou nas filas de sangue da estante haverem lombadas com marcas de uso, revisita a Capote e a Carrère, à límpida Patricia Highsmith (mordibizei isto, já não há volta a dar-lhe: siga) os autores morrem e continua o ciúme. de não ter morado em Coimbra à rua Guerra Junqueiro e, por isso, apenas por isso, não ter sido um craque como o Assis Pacheco. nem em Benfica e nunca estive em Angola com desejos de me casar como o sacrossanto ALA, rapaz então tão novo e eu agora já tão velho, acentuadamente coxo para me notabilizar em futeboladas de passeio e longe demais para ir aos domingos de manhã brincar com a areia da praia das Maçãs. fiquei bêbado com estas ilusões e querendo continuar a festa descobri que a cortiça que me guardava o vinho o fizera zurrapa em quase todas as garrafas, um pico ácido no travo, vinagre, vinagre e não o néctar da uva dos vinhedos que abundam no campo e na charneca, a ilusão da minha garrafeira cheia mas mal estimada e conservada, zurrapas com rótulos enganadores, escrita fina que quando se leva aos lábios não presta.

é o fim de 'Inês', no cascalho que sobra alguma relva nascerá e, nela, um pouco mais tarde aparecerão flores silvestres, os miosótis de que tanto gostas e que me recusas, para que no meu excesso romântico não os mate, arrancando-o da sua felicidade com raízes profundas, tão profundas como a beleza do mundo, em sacrifício do teu colo, belo sim, mas perene como todas as paixões pois mesmo as literárias têm as suas páginas finais de romance. doravante escreverei folhas onde haverá caldeirões a ferver, vira-se a página com ânsias mórbidas de ver o que acontece quando o olhar do condenado entende que está a olhar para a guilhotina que o irá já já decapitar e cegá-lo, o patíbulo onde o laço o espera e a luz a esvair-se no aperto mortal da forca (sou um óptimo leitor de mim, sossega bela Inês que nunca esgotarei por vontade este filão, egoísta e narcisista como sou)

não quero nesta última 'carta' lembrar momentos e recordar frases como em elogio fúnebre. quero olhar para a estante e ao ver a tua lombada acreditar que no editado estão páginas de paixão, linhas de palavras tão vastas como as carícias que te dei e eu sei que excedi-me, nas epístolas destapei poros ocultos pelo pó dos anos e lambi-te e lambi-me de ponta a ponta. não sou um vaidoso falso pois sei que a minha língua é suave quando soletra com ternura, não tão ágil e sabida como as dos nomes consagrados do voyeurismo literário mas foi suave no cunilingus que te escrevi e dediquei. guarda o teu exemplar, cada página é uma dedicatória à mítica Inês, à musa. no meu há páginas com borrões das lágrimas, das belas lágrimas nascidas por amor. não tarda e outro escritor te encontrará, escreverá novos elogios em novas palavras inventadas. é que, espremida a literatura e exangue o autofagismo do autor e do leitor, sobrevive sempre o amor e há sempre um novo amante de dedos ágeis que o escreva, escrever-te para seduzir-te perpetuando o mais belo mito literário, tão perfeito que há momentos em que Inês salta das folhas e vive lado a lado com o seu criador. reencontrar-nos-emos pois sou um leitor adito, insaciável. o sino soa e os pássaros levantam voo em revoada, o céu é sempre lindo quando o seu chilrear esvoaça.

com muita ternura do que foi teu escriba dedicado, Pedro-carlos

1 comentário:

Anónimo disse...

Final de um capítulo de todos nós, de mim, de ti e de todos os outros, outras...
mas o melhor de tudo é que se espera um renascimento, qual fenix literária, eu assim o espero.
Abraço, sempre amigo, th